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O “Falo no jardim” na Biblioteca 1

Deus Priapo Recebemos no dia 22/9, na Biblioteca da EBP-MG, o professor de letras clássicas da USP, João Ângelo Oliva Neto. Além de tradutor de poesia grega e latina, é autor do livro Falo no jardim, objeto dessa animada conversa. Essa atividade se deu como uma preparação ao XXII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano – A queda do falocentrismo: consequências para a psicanálise, que acontecerá em novembro no Rio de Janeiro. Recebemos também a diretora do evento, Maria Silvia Hanna, que provocou o debate com instigantes questões.

Falo no jardim2 é um livro precioso. Além de um belo ensaio introdutório do autor, apresenta uma coletânea de poemas traduzidos por ele em homenagem ao deus Priapo: a Priapeia Grega e Latina, que vão do século III a.C. ao século VI d.C. O leitor pode apreciar ainda um exuberante registro iconográfico sobre as personificações desse “Deus Menor”.

De um modo descontraído, João Ângelo relata que Priapo é filho de Dionísio e Afrodite e, segundo a narrativa mítica, teria sofrido uma punição por parte de Hera, deusa protetora do matrimônio, pela promiscuidade de sua mãe. Sua punição seria a de portar um membro desproporcional e em constante estado de ereção. Sendo em si uma contingência, o estado de ereção permanente soa como uma aberração portadora de um excesso perturbador.

Deus da fertilidade, da abundância e da prosperidade, era evocado em espaços públicos tais como portos, locais de pesca e de atividades agrárias. Priapo é o que semeia a vida, garante a colheita e a perpetuação da espécie. Ao longo dos séculos III e II a. C., ele migra desses espaços para o jardim, instalando-se nas propriedades privadas.

Em sua exposição, João Ângelo deixa claro o efeito de declínio que essa mudança expõe, ao instalar o deus como defensor dos interesses do dono da casa e, tal como um espantalho em uma horta, este deus passa a ser porta voz de uma ameaça risível e derrisória. Fincado no jardim é aquele que fala em vão, torna-se um deus bufão.

Assim como as imagens, os poemas que compõem a Priapeia são cômicos e o riso tem a função de afastar o mal.

Tal declínio da dimensão divina de Priapo, fruto de sua privatização, de sua redução aos jardins, permite-nos interrogar sobre o declínio do falo na contemporaneidade, articulado à dimensão cada vez mais privatizada em que este aparece em sua condição de semblante. Lacan nos dizia do gozo do idiota, ou do proprietário, e da dimensão risível do mesmo. Da mesma forma, o avanço do movimento feminista e das discussões de gênero, denuncia cada vez mais a precariedade dessa associação, do membro ao falo, retomando seu estatuto de falácia.

O próprio João nos ajuda nessa leitura. Inicialmente teria nomeado seu livro “O falo no jardim”, mas por sugestão de um colega, decidiu omitir o artigo, favorecendo o equívoco na língua portuguesa com o verbo falar. Essa nuance nos pareceu pertinente às articulações lacanianas sobre o conceito de falo que, não sendo o órgão, inicialmente é situado como significante da falta e medida possível do des(encontro) entre os sexos para depois ser relegado à categoria de mero semblante. Como falácia que verifica o real, o falo fica reduzido a uma “phunção de fonação” tal como o deus falastrão que enuncia uma ameaça vazia.

Outro ponto interessante apontado por João Ângelo é o de que, do lado feminino, nunca foi possível localizar um equivalente à Priapeia. Não há poema para o sexo feminino, mas João Ângelo citou em sua exposição a existência do Poema do Andrógino Estatírio. Encontramos na iconografia do livro algumas imagens do deus Priapo com traços claramente femininos.

Priapo está em toda parte e o significado de sua imagem é metonímico: ele mesmo é o representante do coito. Mas temos também a figa como um representante mais evidente do coito. Para os antigos, a sexualidade não era algo a se esconder, ela é, como nos disse João Ângelo, “benfazeja”.

Representado pelos antigos pelo símbolo da concha umedecida, o feminino expressa um gozo velado e obscuro, mas, nem por isso, menos contundente em suas manifestações. Não sendo unificadas de modo evidente por um símbolo, as mulheres falam uma a uma, de um modo disperso e lacunar e nesse mistério reside a força de sua presença no mundo, para além da reivindicação do protesto feminista.



1 Texto produzido coletivamente a partir das anotações de Laura Rubião, Lúcia Grossi e Henri Kaufmanner.
2 NETO, João Angelo Oliva. Falo no Jardim. Priapeia Grega, Priapeia Latina. Cotia e Campinas. Ateliê Ed. e Ed. UNICAMP, 2006, 432 p.
   
   
 


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