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Reflexões sobre a forma atual do impossível de ensinar 1
Éric Laurent

  1. Dizer que é impossível ensinar é dizer que é preciso, incessantemente, remeter ao canteiro de obras tudo o que apareceu, em um dado momento, como uma solução para essa aporia. A dificuldade que percebemos no ensino atual das Seções Clínicas é o signo de que alguma coisa chegou ao extremo. Encontramos uma das formas do impossível de ensinar. É a partir desse encontro, dessa rata, que poderemos reavaliar nossos métodos. Fomos surpreendidos pelo muro da linguagem, é preciso recomeçar a aprender.

  2. No acento colocado sobre o ensino na orientação lacaniana, é preciso distinguir dois registros distintos. Por um lado, aquele da transmissão de disciplinas necessárias ao saber do psicanalista. Por outro lado, a transmissão da maneira pela qual é preciso ler o inconsciente não como coisa morta, uma significação completa, um manual de psicologia, mas como uma coisa viva que tem necessidade do aporte de cada um de seus praticantes para encontrar seu devido lugar no mundo. Ao mesmo tempo em que Jacques Lacan definia, de um modo muito preciso, os saberes necessários ao psicanalista, no continente
    das logo-ciências, ele sublinhava todo seu interesse pelas tradições orientais do mestre, tanto pela tradição budista hindu, quanto pela transmissão que é feita no Japão da exigente seita Zen ou, ainda, na tradição taoísta chinesa.
    Lacan desordenava tanto o conteúdo do que era conveniente ensinar aos psicanalistas, quanto o modo de ensino. Partamos, portanto, dessa constatação: o psicanalista, quando tenta “ensinar o que a psicanálise lhe ensina”, desordena os modos de ensinar admitidos, desordena-os nos reagrupamentos de saber operados pela universidade e os desordena perante o modo como esta última os transmite. A questão, hoje, é duplamente vibrante. Devemos despertar a universidade e seus professores do erro de perspectiva que existe em se reunir, em um conjunto, psicologia, psicanálise e psicoterapia, pensando que o horizonte que justifica um tal reagrupamento é a existência, fora da universidade, das neurociências.

  3. Temos os melhores testemunhos de que a universidade leva ao conformismo, a uma certa morte do pensamento. Por exemplo, o testemunho de Nietzsche, em 1872, dois anos depois da vitória da Alemanha com relação à França, vitória que levou à produção de um traumatismo em nossa universidade, um traumatismo do qual ela jamais se resgatou. Essa vitória instalava a universidade alemã como modelo a ser copiado, jamais atingido, dado a seriedade de seus resultados. Nietzsche via nesse triunfo universitário da época o triunfo de um ponto de vista “anatômico”. Dizia Nietzsche: «a maneira histórica se tornou a tal ponto habitual para nossa época que o corpo vivo da língua é sacrificado aos estudos anatômicos, mas a cultura começa, justamente, quando se pretende tratar o vivo como vivo». Por sua vez, Nietzsche discernia o enorme mal da universidade alemã no fato de que, efetivamente, se tratava de uma universidade prussiana e, como Hegel, ele via, atrás da liberdade acadêmica, a presença do Estado. Ele dizia isso de um modo engraçado: «como o estudante, entre nós, se liga à universidade». Respondemos «pelos ouvidos, trata-se de um ouvinte». O estranho se espanta: «nada mais do que pelos ouvidos?», pergunta ele, mais uma vez. «Nada mais do que pelos ouvidos», respondemos-lhes, ainda uma outra vez. O estudante escuta (S). É muito frequente que o estudante escreva ao mesmo tempo em que escuta, esses são os momentos em que ele está preso ao cordão umbilical da universidade». Alguns podem dizer mais ou menos o que querem - trata-se da liberdade do professor; os demais escutam, mais ou menos, o que querem «desde que, atrás desses dois grupos, a uma distância regulamentada, o Estado se mantenha com uma mesma ternura, com uma face rígida de vigilante, para lembrar, de tempos em tempos, que ele é o objetivo, o fim e o conjunto desses estranhos procedimentos de palavra e de audição». O que Nietzsche dizia se escreve, assim, nas fórmulas de Lacan:
                                                               S2 a
                                                               S1 S/

    Então, o que está em jogo no ensino consiste na articulação de S2 e do a pela boa flecha.

  4. Pode-se deduzir daí todos os tipos de consequências sobre as modalidades de ensino próprias à psicanálise. As primeiras modalidades sustentadas durante a experiência de Vincennes na França foram desastrosas. Era bastante considerável o que estava em jogo. Pela primeira vez na França, havia oportunidade de se ensinar a psicanálise na universidade à luz da psicanálise. O Departamento de Psicanálise não queria mais ocupar um lugar secundário em um Departamento de Psicologia. Tratava-se de operar novos reagrupamentos de saberes, de extrair consequências do ensino de Lacan sobre as matérias próprias aos saberes do psicanalista. Para demonstrar o que era o avesso do discurso do mestre, os psicanalistas tomaram, em sua maioria, a posição do preguiçoso. Eles se silenciaram para acabar provando que gozavam em silêncio. Foi preciso que J.-A. Miller mostrasse uma solução em ato. Foram necessários seis anos para se fazer o balanço dessa primeira modalidade da experiência e para se reevocar que a via, como dizia Lacan, da antifilosofia, era ensinar os saberes de maneira viva. Para se experimentar isso, foi preciso trabalhar e, desde então, continuamos nessa via. J.-A. Miller conduziu a contra-experiência da reforma do Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII em 1974, logo seguida da criação da Seção Clínica, para mostrar que almejamos perfeitamente a ensinar e sermos também, nós mesmos, submetidos à divisão entre o ensino do saber morto e do saber vivo.
    Fazer com que os estudantes possam se interessar pela psicanálise é também fazer aparecer a demanda pela psicologia como um sintoma social. Trata-se de um sintoma social ligado à ideologia do culto da ciência. Se muitos jovens estudantes querem ter uma psique, querem ter um funcionamento mental como todo mundo e estarem certos disso, é por causa da angústia que a ideologia da supressão do sujeito engendra. A demanda pelo saber clínico é também, nesse contexto, uma variante técnica. O apetite pelo saber clínico pode resvalar no saber-fazer. Por isso, o sucesso das seções clínicas é perigoso. Ele pode nos dissolver tal como nós acabamos nos dissolvendo no sucesso das ACF.
    A qual significante-mestre estão ligados os “procedimentos de palavra e de audição”? Estão ligados, agora, ao mercado de trabalho e à angústia de exclusão veiculada por ele. Continuar a responder apenas unilateralmente à demanda de autorização técnica implica manter um desejo vivo quanto ao que ensinamos. Vamos dar uma forma concreta ao “desejo vivo”.

  5. Reencontrar lugares onde se possa debater de um modo exigente e vivo é reencontrar a devida relação frente à demanda técnica que nos assalta. Não podemos, simplesmente, dizer “Não!”, e nos perdermos em um isolamento esplêndido. É preciso, às vezes, dizer “sim!” e “não!”. Heidegger falava de “serenidade”, “Gelasseheit”, para designar o que ele imaginava como solução face ao mundo técnico. Ele propunha conservar “o espírito aberto ao segredo”. Trata-se de alguma coisa da mesma ordem quando Lacan nos propõe ensinar a partir do “não-saber”. Isso não cai do céu. É preciso que toquemos, de tempos em tempos, esse não-saber, para recobrar as forças, tal como o gigante Anteu devia tocar a terra. Descrevamos duas das vias que estão abertas a nós para se fazer isso.
    Uma é aquela do estudo insistente de um texto ou de uma questão, abrindo espaço para uma conversação estruturada. É a via de encontros como aqueles das primeiras Conversações Clínicas ou como aquele em que nos reunimos em torno do “caso Aimée”.
    A outra via é aquela de uma apresentação crítica de um livro importante em uma disciplina conexa. Trata-se de alguma coisa análoga à apresentação do livro de J. Searle por J.-A. Miller em seu curso de 1997. O comentário crítico de revistas de nosso campo comparado aos debates “conexos” na ciência ou na filosofia poderia, também, contribuir para o “aggiornamento” de referências. O essencial é caminhar rumo à douta ignorância. Isso é crucial nesses tempos de difusão onde tudo vale tudo.

 

Tradução: Sérgio Laia

1 Texto de Éric Laurent sobre o ensino, escrito para a reunião dos coordenadores das Seções Clínicas francofônicas. Publicado em português em Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, Eolia, n. 29, p. 3-6.
   
   
 

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