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Homenagem a Judith Miller
Ana Lydia Santiago

 
   

Quem teve a oportunidade de conhecer Judith Miller, encantou-se. Duas contas azuis iluminavam seu rosto, definido por um fio delicado de sorriso. Ouvidos em permanente alerta. A voz sonora e de timbre doce modulava, com vivacidade, a força de suas palavras em ação no Campo Freudiano. Enquanto a mão direita geralmente segurava um cigarro, a esquerda ia convidando um, agregando outro que se aproximava desse Campo, movido pela transferência de trabalho. Como costumamos dizer, Judith era do tipo “gente que faz”, que “põe a mão na massa”.

Todas as vezes em que estive a seu lado, ela estava calmamente trabalhando, reunindo grupos, traçando rumos, organizando eventos e publicações, planejando ações. Contava com quem estava presente. Destacava-se nesse movimento seu desejo de inclusão, no Campo Freudiano, das experiências mais diversas de pessoas dos quatro cantos do mundo que davam testemunho de terem sido tocadas pelo ensino de Jacques Lacan e afetados, em sua prática clínica, pela psicanálise de Orientação Lacaniana.

Lembro-me de Judith recorrer, algumas vezes, ao Ato de Fundação, de Lacan, para valorizar a dimensão inventiva da experiência da psicanálise, contrária a qualquer padronização, e defender a reconquista perpétua da própria psicanálise. Entendia o interesse dele em fazer valer as seções de psicanálise aplicada e de recenseamento, bem como a relação estreita dessas duas com a seção de psicanálise pura. Um único encontro com um psicanalista pode implicar consequências terapêuticas decisivas para alguém que sofre de sintomas contemporâneos nomeados pela imposição do discurso universal, propunha ela.

A articulação da psicanálise com campos afins é fundamental nesse movimento de crítica de iniciativas que, em nome do direito de todos, são antidemocráticas e apagam a singularidade dos casos. Entre as diversas ações de Judith Miller como Presidente do Campo Freudiano, tive a oportunidade de acompanhar mais de perto a criação do CEREDA e do CIEN.

No que diz respeito ao CEREDA – nome proposto por ela para o Centro de Estudos sobre a Criança no Discurso Analítico, que resultou do trabalho de um cartel integrado, além de por ela própria, por Jacques-Alain Miller, Éric Laurent, Rosine e Robert Lefort –, incluir as crianças no discurso analítico era o mote, associado à ideia de um lugar de estudos aberto, que favorecesse a praticantes de diversos horizontes pôr à prova suas experiências clínicas com crianças e jovens. Desde a fundação do CEREDA, em 1983, Judith impulsionou e acompanhou o movimento dessa entidade, que foi se modificando no curso dos anos, em consonância com as transformações dos tempos.

No que concerne ao CIEN – Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança –, uma nova relação com o saber foi proposta em função de conversações com outras disciplinas implicadas no trabalho social. Sair da impotência à medida que se resgata o saber próprio a cada um é a empreitada do trabalho desse Centro e, também, a do analisante em seu trabalho de transferência, rumo ao final de análise. Nesse ponto, Judith Miller insistia em se referenciar ao último ensino de Lacan e às contribuições de Miller, e apostava na possibilidade de o CIEN renovar a formação de analistas e contribuir para tanto.

Judith Miller deixou esse mundo na passagem de 6 para 7 de dezembro de 2017, mas seu lado vivo certamente estará presente em cada trabalho que reivindica ser CIEN e inspirará cada atitude dos analistas das Escolas do Campo Freudiano, a exemplo da Associação de Pais e Amigos dos Autistas, que constitui verdadeira resistência ao apagamento da singularidade.



 
   
   
   
 
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