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O real da psicanálise é a nossa moeda
Angelina Harari PDF

 
 

O início de 2017 reservou surpresas. A partir de 1° de março, a Escola da Causa Freudiana (ECF) encampou uma campanha contra o discurso de ódio do partido de extrema direita na França: a Frente Nacional. Foi a partir do contexto da eleição francesa que Jacques-Alain Miller assinalou a diferença entre a posição do analista que se engaja a título pessoal, como cidadão, em um partido político de sua escolha, e a política da psicanálise que se move através de seu coletivo. A criação da Rede La Movida Zadig (acrônimo de Zero Abjection Democratic International Group) ocorreu em 15 de maio de 2017, mas um grupo europeu é anterior a essa iniciativa de rede internacional e tem como nome “O real da vida” (Bélgica e França). Trata-se de colocar a céu aberto o trabalho em torno da política lacaniana, diferenciando-a da política partidária. Colocar-se a serviço de um partido político, significa servir a um outro discurso que não o discurso analítico. La movida Zadig não é um partido político em que as pessoas renunciam à sua liberdade de pensamento.

A proposta dessa rede é, segundo seu fundador Jacques-Alain Miller, entrar no campo da política, tendo como intuito levar tanto os políticos quanto o público a escutar o que o discurso analítico pode trazer ao debate para os cidadãos em plena autonomia de pensamento e de ação. Razão pela qual a adesão à rede pode ser feita não importando se se é membro ou não de uma Escola de Psicanálise, sendo a única condição a de não estar filiado a um partido político. Portanto, a adesão implica falar em nome próprio numa rede que faz ressoar cada enunciação singular. A Escola Brasileira de Psicanálise apoia essa rede que ela não dirige. Aproveito para agradecer a EBP através de suas instâncias e, principalmente, ao diretor Luiz Fernando Carrijo da Cunha que, com sua diretoria, tornaram este Fórum possível.

O Fórum dos Psis existe como associação de ordem jurídica. Ele foi criado na França, em 2011, quando se tratou de uma campanha contra uma emenda que limitava a atuação da psicanálise na esfera da saúde pública e foi retomado em março deste ano, com o apoio da Escola da Causa Freudiana.
Para atuar em política, a partir do discurso da psicanálise, é necessário (MILLER, 2017):
1 - Confiar na autonomia do próprio pensamento;
2 - Rebaixar o nível das identificações;
3 - Conseguir que cada qual se remeta à própria opinião;
4 - Não massificar as reações;
5 - Não se encantar com a referência a um líder;
6 - Não atuar no eixo imaginário;
7 - Assinalar o real que está em jogo.

Reiterando, La movida Zadig pretende fazer existir a psicanálise no campo político, entendendo que se faz necessário uma presença não apenas na clínica, na Psicologia individual, como diz Freud, quanto na coletiva, ou seja, no campo político. Marcar presença no campo político como psicanalistas que podem oferecer algo tendo em vista que a própria possibilidade da psicanálise está vinculada à liberdade de expressão, o que será tema dos colegas psicanalistas neste Fórum.

O real da psicanálise é a nossa moeda, uma palavra sobre o real, que sempre foi buscado por Jacques Lacan na experiência da psicanálise, a ponto de afirmar que se trata de um sintoma: buscar o real que está em jogo na experiência analítica constitui o sintoma de Lacan1. Dizer que o real é o sintoma de Lacan, entre nós, significa que ele encontrou no real sua individualidade, pois o sintoma é a forma individual de cada um se conectar numa experiência de análise e, posteriormente, constitui a base de um pedido de admissão a uma Escola de Psicanálise, onde cada um entra pelo seu sintoma. Nossa forma de denotar a individualidade é a liberdade de pensamento.

Afirmar que é nossa moeda, joga com o equívoco entre a moeda no Brasil chamar-se real e o fato do real, para nós, constituir um recurso fundamental. A etimologia latina da palavra moeda, moneta – afinal, falar em nome da psicanálise lacaniana, sem evocar o equívoco, nossa moeda corrente, pode-se dizer, e sem se remeter a etimologia das palavras, não nos faz dignos da proposta da psicanálise lacaniana –, então, tratando da etimologia do termo, temos que na Roma Antiga, moneta, era o templo de Juno, onde se cunhavam as moedas. Era, pois, a Casa da Moeda, do verbo monere, avisar, advertir; o cognome é atribuído à deusa Juno por ela ter, em certa ocasião, avisado os romanos sobre um tremor de terra; o nome do lugar estende-se à própria cunhagem e, finalmente, fixa-se a acepção “moeda, metal amoedado”; a acepção de moeda é provavelmente de origem fenícia.

No Wikipedia encontramos Moneta, Juno Moneta, a quem está ligada Mnemosine (memória) que mantinha em seu templo um minucioso registro dos eventos históricos. Assim sendo, o real da psicanálise é a nossa moeda pode ser entendido como nosso alerta, que estamos a serviço do discurso da psicanálise no que ele mostra o real em jogo, desnudando as identificações, desnudando o seu próprio semblante. O discurso analítico não apenas não dissolve os semblantes dos outros discursos, o que lhe é característico, como ainda denuncia igualmente o seu próprio. Ou seja, ainda que só obtenha seu efeito do semblante, a operação da psicanálise tem como objetivo desnudar o real. Este é o paradoxo de uma operação que afeta o real, levando, ao final, o suporte do semblante (MILLER, julho de 2017), o Sujeito suposto Saber (SsS), ao encontro de sua vocação, a de se autodestruir.

 
 
1 LACAN, J. O Seminário – livro 23. O sinthoma. Rio de Janeiro, JZE, 2005, p. 128.  
 

Bibliografia

LACAN, J. O Seminário – livro 23. O sinthoma. Rio de Janeiro, JZE, 2005, p. 128.
MILLER, J.-A. Campo Freudiano, ano zero. Lacan Quotidien n. 718, Paris, 11/07 2017.
MILLER, J.-A. Questão de Escola: proposta sobre a Garantia. Opção Lacaniana online nova série, n. 23, julho de 2017.

 
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