
EDITORIAL
Nohemí Brown
Temos em mãos um boletim mais, o terceiro desta nova série e último da presente Diretoria da EBP. A cada Dobradiça, no espaço O Cartel enlaça, contamos com a elaboração de colegas, principalmente AMEs, entorno de uma pergunta que se apresenta como incontornável. Da qual simplesmente não podemos recuar nem ignorar. Neste boletim, no meio do momento em que nos encontramos, no auge de uma pandemia, e diante do fato de que o cartel se mantém de forma viva como dispositivo de trabalho na EBP…
CARTÉIS
O Cartel enlaça
Cartel – máquina de guerra contra o isolamento
Sandra Arruda Grostein
A partir da questão colocada pelos editores de Dobradiça, gostaria de desenvolver uma reflexão sobre o impacto da virtualidade no dispositivo do cartel. Como sabemos, o dispositivo do Passe na EBP não aderiu de imediato ao mundo virtual, foi preciso um tempo para compreender, antes que este voltasse, parcialmente e sob algumas condições, a funcionar no âmbito da Escola. O Cartel, ao contrário, não só se manteve ativo como cresceu muito em número e em diversidade na sua composição.
O cartel …ajuda-a-gente-a-se-ver?
Iordan Gurgel
Seguindo a orientação lacaniana devemos, sempre, tomar o cartel como instrumento necessário à formação do analista – para elaboração do saber construído – que serve ao discurso analítico e à Escola. O funcionamento do cartel na Escola de Lacan concerne à formação do analista, em que o saber teórico se traduz no saber-fazer com o real na clínica e a suposição de um laço institucional novo que considere o S (Ⱥ). Se estamos no campo da formação, a análise pessoal, a supervisão e o estudo teórico aí estão implicados e é neste viés que o cartel se formaliza e funciona como instrumento de transmissão.
O Cartel enquanto esforço de resistência, mesmo na pandemia
Henri Kaufmanner
Sempre achei bem interessante os efeitos do encontro de Lacan com a psiquiatria inglesa, e como esta o influenciou na construção do dispositivo de Cartel, o qual, junto com o Passe, são a base de sua escola. Os grupos de trabalho constituídos no esforço de guerra do Reino Unido, baseados nos Grupos Operativos de Bion e seus colegas, permitiram ao exército inglês, não somente a recuperação daqueles soldados que voltavam combalidos da experiência da guerra, como também a construção de seu exército. Estes grupos ajudaram muito a sustentação da resistência britânica na luta contra o nazismo.
Pontuações sobre o cartel
Mais Um, uma função que circula
Ana Tereza Groisman
O Cartel surge com a Escola de Lacan e se articula a seu ensino desde o início. Lacan propôs a estrutura do Cartel como base de apoio e meio pelo qual executa-se o trabalho de Escola.
O funcionamento do Cartel se aproxima da topologia dos nós, pois, formado o Cartel, cada um de seus cartelizantes é fundamental para que o laço de trabalho se sustente. Cada componente assume para sí a função de enlaçar o grupo ao trabalho de Escola. Nesse sentido, como conclui Lacan, o Mais Um pode ser qualquer Um, desde que seja alguém (Lacan,1980).
Cartel: o Uno e o Múltiplo
Cleudes Maria Slongo
No ato de fundação de sua Escola, em 1964, Lacan lança uma proposta revolucionária de trabalho que subverte a tendência universal dos grupos humanos, que se estruturam em torno de um líder, a quem seus membros se identificam e a ele delegam uma posição de mestria.
O Cartel não se sustenta na crença de um Outro que sabe, da lógica do todo, do ideal. Trata-se de um dispositivo que “conjuga o laço social que permite a produção, com a palavra contingente de cada um, com o traço próprio, com seu sintoma, com seu nome”1. Assim sendo, ele se opõe radicalmente à burocracia dos grupos analíticos cuja visada é o acúmulo de conhecimento científico.
O Cartel e a Escola
Maria Wilma Faria
Os cartéis são algo vivo, que ressoam em nossa Escola. Lacan, referindo-se a eles, utiliza o significante turbilhão, que comporta um vazio em seu centro, em torno do qual algo agita e causa. Os cartéis devem interrogar a Escola, pois trazem em si a tentativa de furar a lógica vertical dos grupos, provocando ação. O cartel pode marcar um antes e um depois na vida do cartelizante. Entra-se com a divisão, uma pergunta; o vazio empurra o sujeito em direção ao trabalho, não sem o seu traço próprio, condição para haver um trabalho que produza algum saber .
O cartel em intensão e extensão da psicanálise
Marilsa Basso
O cartel, “órgão de base da Escola”, é uma aposta que Lacan instituiu com um ato junto à Fundação da Escola, em 1964.
Como alicerce de uma construção, o cartel dá suporte à Escola, a circunscreve e delimita seu terreno, assim como é também sua porta aberta, podendo ser uma entrada assim como uma expansão.
Entre palavras, corpos e atos, há no cartel um real que insiste possibilitando a vivacidade de um trabalho de Escola, ele a interpreta e a inova.
O que enlaça o cartel
Rosane da Fonte
Como o poeta, encontramos uma pedra “no meio do caminho”. Um real contingente se lançou em nossa caminhada. Como contorná-la?
O presencial que sustenta o laço na Escola foi provisoriamente deslocado para o epistêmico, pela via do Cartel no qual Lacan precisa a conexão entre o individual e o coletivo.
O cartel, na Escola de Lacan, não é só uma ferramenta de trabalho, ele instaura uma política. Não ceder diante do real que está no cerne da Escola e na formação do analista.
INTERCÂMBIO
AS MUSAS
As musas eram as filhas de Zeus com a deusa Memória e inspiravam aqueles que as encontravam, com os cantos que serviam de objeto causa para o discurso.

Fonte: grafite do artista Marcos Costa, Spraycabuloso na entrada da favela Solar de Unhão, em Salvador foto Antonello Veneri/AFP
“A favela como solução”
Entrevista com Preto Zezé, por Cleyton Andrade
A comunidade científica e sobretudo a epidemiológica retoma o conceito de sindemia para falar da crise sanitária do novo Coronavírus, muito mais complexo do que “pandemia”, por envolver, como diversos atores de uma crítica social já haviam alertado, que a covid-19 interage diretamente com a desigualdade social, atingido de maneira mais violenta minorias sociais e étnicas. Somos confrontados com uma ameaça que não reporta apenas ao vírus, mas a uma ameaça naturalizada com a qual convivemos por muito tempo: a desigualdade social. Isso implica que o combate à covid-19 estará fadado ao fracasso caso não se combata, ao mesmo tempo, a desigualdade social e econômica, bem como suas manifestações sob a forma de um racismo estrutural, inscrita no corpo pulsional. Ou seja, não se pode combater o vírus de forma eficaz desconsiderando a desigualdade política dos corpos.
