Orientação Lacaniana

Outubro 2014

 

Trazemos este mês duas questões abordadas por Jacques-Alain Miller no seu argumento para o Congresso da AMP de 2016, a saber: o estatuto do corpo e a interpretação no último ensino de Lacan.


Elas são introduzidas na investigação desenvolvida por Romildo do Rêgo Barros no Seminário de Orientação Lacaniana da Seção Rio de Janeiro da EBP, a partir de sua leitura do Curso O ultimíssimo Lacan, de 2006-2007, de Jacques-Alain Miller, publicado em espanhol em 2012. Segundo Romildo, a passagem para o ultimíssimo ensino de Lacan se dá como um salto, do inconsciente história para o real extratempo, o que implica em uma ruptura com a continuidade e uma maior presença da contingência. A teoria já não se elabora a partir da histeria e da história, mas a partir da psicose, onde a alucinação é tomada como uma falha na historicização. O real do trauma irrompe então, na modalidade temporal da urgência. Neste ultimíssimo ensino, a “combinação borromeana” se opõe às “afinidades imaginárias do corpo” e desde então, coloca-se a questão de como abordar o próprio corpo, em oposição ao Outro. Como se dá a passagem do Outro ao Um-corpo? Surge uma nova maneira de postular o sujeito, que passa à primazia do amor de si como corpo. A inspiração de Lacan já não é Freud, mas Joyce. Que status e que lugar restam então para a interpretação? – pergunta Romildo. Como ela toca o real do gozo?


Sua investigação dialoga com a leitura feita por Silvia Tendlarz, de um outro Curso de Jacques-Alain Miller, A fuga do sentido, de 1995-1996, por ela estabelecido e também publicado, em espanhol, em 2012. Neste texto, gentilmente cedido por Silvia ao nosso Boletim, ela faz um exame da interpretação no último e ultimíssimo ensinos de Lacan, a partir do vazamento do sentido, cujos efeitos são impossíveis de calcular. A fuga do sentido segue a tese do inconsciente intérprete, até a busca de uma interpretação relativa ao real: a fuga estrutural do sentido como real testemunha o impossível da relação sexual. A fuga do sentido supõe certa depreciação da verdade, e acompanha a mudança de perspectiva operada por Lacan no Seminário 20, onde o “querer gozar” se opõe ao “querer dizer” do inconsciente. A antinomia entre o Outro e o gozo coloca em questão a interpretação, retomada por Miller em O ultimíssimo Lacan e em Sutilezas analíticas, Curso de 2008-2009.


À questão de Romildo sobre como abordar o corpo no ultimíssimo ensino, responde a investigação dos colegas da Seção Minas da EBP, Jésus Santiago, Sérgio Laia e Ram Mandil. Como anunciado na DR de agosto, seu Seminário leva por título “A perversão do gozo, o corpo e o imaginário”. Jésus Santiago problematiza a frase, proferida por Jacques-Alain Miller no seu argumento para o Congresso da AMP, “o imaginário é o corpo”. Do imaginário como obstáculo, submetido às determinações do simbólico, Lacan passa à postulação do nó borromeano, desfazendo qualquer hierarquia entre os três registros. Para Jésus, o imaginário que se deduz da clínica borromeana, desempenha um papel crucial no saber-fazer com o parceiro-sintoma. RamMandil, por sua vez, investiga a referência do Seminário 23, à crença do falasser em seu corpo como fundamento para a sua adoração, sobre a qual Lacan localiza “a raiz do imaginário”. Ram interroga a tese de Lacan segundo a qual “a adoração é a única relação que o falasser tem com o seu corpo”. De que maneira essa adoração lhe confere consistência? É a questão examinada a partir de Joyce, mas também de Schreber e do Homem dos lobos.

 

Elisa Alvarenga
Outubro de 2014

 

 

Seminário de Orientação Lacaniana - 2014

Coordenação: Romildo do Rego Barros

 

PrimeiroEncontro: O que há após o último?

 

A passagem para esse tempo, o ultimíssimo, se dá como um salto, e não como uma evolução. Os próprios itálicos usados para escrevê-lo já indicam uma dificuldade em qualificá-lo positivamente, e até em traduzir a expressão francesa le tout dernier, sintetizada na época por Jacques-Alain Miller com a sigla TDL.
Esse salto vai do inconsciente como equivalente à história, para o real extra tempo, fora das leis da linguagem e do jogo intersubjetivo. Miller apresenta assim a questão:


“Há um tempo que tem que ser situado do lado da história. Trata-se do tempo não somente lógico, como também do que se vive na continuidade da existência, o tempo contínuo. Do outro lado, do lado do real, há um extra tempo, o próprio tempo da interrupção do fluxo temporal” (página 49).


Isso implica uma ruptura na relação – de analogia, segundo Miller – que a situação analítica mantém com a história e com a continuidade, e um aumento da importância que passa a ter a contingência. Se o tempo perde a continuidade, ou seja, se já não se pode representá-lo pela imagem de uma flecha que vai do passado ao futuro, passando pelo presente, é portanto, a base da prática analítica que está em questão.


Na própria maneira de produzir a sua teoria do inconsciente, Lacan impõe uma transformação:


“...é uma teoria que já não se elabora a partir da histeria e da história, mas a partir da psicose” (p. 43).
A partir disso, o fenômeno da alucinação, visto como uma “falha na historicização primária”, ganha uma importância decisiva, na medida em que, contrariamente à paranoia, irrompe sem Outro:


“A alucinação (...) põe em cena o comportamento não submisso de um elemento que não caiu sob a legalidade da cadeia significante” (p. 44).


Três textos do ensino de Lacan serão importantes no estudo desse curso de Jacques-Alain Miller:


“Resposta ao comentário de Jean Hyppolite”, de 1954


“O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada”, de 1945


“O momento de concluir”, seminário de 1977-1978


SegundoEncontro

 

Jacques-Alain Miller faz uma constatação: Lacan, na sua primeira teoria do inconsciente, partiu da histeria como um equivalente da história. Daí o neologismo que criou mais tarde no “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”, hystoire (hystoeria, como foi transcrito em português – está na página 567 dos Outros Escritos). Não se trata de um simples sinônimo, mas de uma série, como diz Miller, que vai da história, passa pela hystoeria e chega à histeria. Na sua “Resposta ao comentário de Jean Hyppolite”, Lacan afirma: “o que ensinamos ao sujeito para reconhecer como seu inconsciente é sua história”. Vamos tentar abordar a questão da história em oposição ao real, que Miller formaliza como História // Real, o que indica que o real irrompe como descontinuidade. Uma das figuras privilegiadas da descontinuidade é o trauma, que Miller associa à modalidade temporal da urgência. Será uma maneira de introduzir a nossa discussão sobre o inconsciente real. Usaremos como bases da discussão, sobretudo, a primeira e terceira aulas do curso O ultimíssimo Lacan,  além da aula de número XVII, que é última do curso.


TerceiroEncontro

 

“Temos uma ideia, supõe-se, que não deve nada ao imaginário. O círculo, a linha reta, eles sim devem alguma coisa ao imaginário, à percepção, ao passo que a forma borromeana, a combinação borromeana, por sua vez, não se encontra nas afinidades imaginárias do corpo.”1
Essa frase de Jacques-Alain Miller está na quarta aula do curso. É uma afirmação que aponta para várias outras, ou que se articula com várias outras. Penso que podemos fazer uma pequena lista de frases do mesmo curso que se articulam com essa afirmação, e que dizem respeito ao corpo, direta ou indiretamente. Por exemplo:

  • “a teoria do inconsciente  no último Lacan (...) é uma teoria que já não se elabora a partir da histeria e da história, mas da psicose.” 2

  • “a geometria euclidiana é feita para os anjos, isto é, para o que não tem corpo (...) a topologia , isto é, uma geometria que tem um corpo” 3

No horizonte, podemos pôr uma afirmação de Lacan no Seminário 2:


“É a imagem do seu corpo que é o princípio de toda unidade que ele (o homem) percebe nos objetos”4 .
As “afinidades imaginárias do corpo” são o que permite a relação entre a percepção dos objetos e a forma do corpo.


A questão que poderemos discutir se formula da maneira seguinte: como abordar o corpo e seu lugar na psicanálise, sem a correspondência (geométrica) entre o corpo próprio e os objetos?


Quarto Encontro

 

O Seminário de Orientação Lacaniana partirá de uma frase decisiva que está na página 107 do curso de Jacques-Alain Miller El Ultimísimo Lacan, publicado pela Paidós: “Em lugar do Outro, há um princípio de identidade totalmente distinto, o corpo. Não o corpo do Outro, mas, como se costuma dizer, o próprio corpo”.
Alguns pontos e algumas questões podem ser extraídas do próprio enunciado da frase: 

  • Que relação podemos reconhecer entre esse princípio de identidade e as três formas de identificação estabelecidas por Freud, que Miller enumera e explica logo na página anterior: identificação ao pai (ao S1), identificação histérica (ao $) e identificação ao traço unário (ao Sq), que são, no fundo, diferentes formas de enlaçamento com a alteridade?

  • Na passagem do Outro para o Um-corpo, como o chama Miller, há uma nova maneira de postular o sujeito, que de histérico, que “aponta o ponto de falta do outro sujeito”,  a partir de qual estrutura o seu sintoma e sua maneira de amar, passa à primazia do amor de si como corpo. Ou comoEgo, segundo um uso que fez Lacan deste conceito freudiano.

Essa discussão se encontra, sobretudo, no capítulo VII do Curso.

 

Quinto Encontro

 

Na oitava aula do Ultimíssimo Lacan, Miller fala da psicanálise como de uma hipótese: em lugar de “há psicanálise, logo...”, temos “se há psicanálise, então...”[1]. Isto quer dizer que uma base que se supunha, e que sustentava a psicanálise, deve ser posta em questão. A base que se supunha para a sustentação da psicanálise é o Outro. Sem a sustentação do Outro, a psicanálise, assim como o inconsciente, é uma hipótese. E não uma tese, poderíamos dizer.


No próximo Seminário de Orientação Lacaniana, na segunda feira 7 de julho, tentaremos situar essa mudança de estatuto, a partir do que vimos sobre a passagem do Outro - e da identificação como base da identidade - ao Um-corpo.


Sexto Encontro

 

O sinthoma, na medida em que é o mais singular, é indecifrável, ou, melhor dizendo, o sinthoma é de um registro diferente do da cifra”.[1]


A singularidade, portanto, exclui a decifração. Se a singularidade tem a ver com o Um, a decifração tem a ver com o Outro, lugar do código e da cifra. Se há uma passagem do Outro ao Um, ela se dá justamente às custas da decifração.


A inspiração do ultimíssimo Lacan, nos diz Miller, já não foi Freud, mas Joyce, que produziu “um texto inanalisável” (p. 139). Como pensar então a psicanálise, a prática psicanalítica mais cotidiana, se partimos da ideia de um “Um absoluto, isto é, separado” (p. 139)?


A questão central, naturalmente, é o status da interpretação, conceito freudiano para o qual, salienta Miller, Lacan não propôs uma mudança de nome, como o fez para o Inconsciente.
No próximo seminário, no dia 04/08, procuraremos ver que lugar mantém a interpretação em nossa prática. Partiremos do capítulo IX do Ultimíssimoensino de Lacan.

 

SétimoEncontro

 

partir do que diz Jacques-Alain Miller nas aulas X e XI de El Ultimísimo Lacan, vamos tentar discutir  as relações entre a interpretação e a poesia, tendo por eixo a afirmação de Lacan no seminário 24, segundo a qual “só a poesia permite a interpretação” (p. 161-162). Miller (p. 159) nos dá uma definição da interpretação que poderá nos ajudar: “uma conexão com o significante que teria (…) um efeito de sentido que não seria equivalente a um semblante, senão que alcançaria o real.

 

1 M iller, J.-A.: El ultimísimo Lacan, Paidós, Buenos Aires, 2013, p. 66.

2El ultimísimoLacan, p. 43.

3El ultimísimoLacan, p. 266.

4Lacan, J.: O eunateoria de Freud e natécnica da psicanálise, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1985, p. 211.

 

 

SOBRE A FUGA DO SENTIDO

Silvia Elena Tendlarz

 

Como surge a idéia de Jacques-Alain Miller trabalhar sobre a fuga do sentido?


O próprio Miller explica em sua primeira aula e indica que, no ano anterior, já havia esboçado um breve comentário acerca da “Introdução à edição alemã dos Escritos” (1973), que logo retomou em uma intervenção na Espanha, intitulada “Sobre a fuga do sentido”, publicada junto ao texto de Lacan na revista espanhola Uno por Uno 42 (1995), no mesmo ano de seu curso.


Ele indica que sua idéia desse ano, era situar-se mais próximo do final do ensino de Lacan, a partir do Seminário 20. A partir desse momento, vemos como Miller se desloca ao longo de seus cursos através dos último e ultimíssimo Lacan, e como vai examinando sucessivamente o conceito de interpretação.
Esta apresentação estará centrada em quatro questões:

  1. De onde vem o conceito de fuga do sentido?

  2. Em que momentos Miller o retoma em seu curso?

  3. Qual é sua relação com a interpretação?

  4. Qual é o destino da fuga do sentido nos cursos ulteriores de Miller?

1. De onde vem o conceito "fuga do sentido'?
Diz Lacan: “O sentido, na minha prática, é captado pelo fato de que vaza: que é preciso entender como de um tonel, não como um escapar-se. É pelo fato de que vaza (no sentido: tonel) que um discurso toma seu sentido, ou seja: porque seus efeitos são impossíveis de calcular”.


No “Auto-comentário” de Lacan, em uma intervenção realizada no 2 de novembro de 1973, no VI Congresso da Ecole freudienne de Paris (publicada em Uno por Uno 43), ele retoma esta frase e lhe dá uma precisão: “É preciso entender este termo fuga, no sentido da fuga de um tonel; não é a fuga para frente ou para trás, ou o que vocês queiram: é preciso entendê-lo como um vazamento de um tonel e não como um sair em escapada”.
Continuando, Lacan se refere à interpretação no final de sua “Introdução”, e diz: “Não porque o sentido de sua interpretação tenha tido efeitos os analistas estão no verdadeiro, pois mesmo quando fosse justa, seus efeitos são incalculáveis”.


Explica-o em seguida, de maneira ligeiramente diferente em seu “Auto-comentário”: “...na interpretação, quando parece que vemos o suporte mesmo do sentido, chegamos ao ponto em que de toda interpretação, os efeitos são incalculáveis”.


Isto o conduz em ambos os textos, à afirmação de que o inconsciente dá testemunho de algo real como inacessível.


A partir do curso La fuga del sentido, J.-A. Miller avança no estudo do binômio inconsciente-interpretação dando-lhe distintas conotações. Este curso é solidário do desenvolvimento acerca do inconsciente intérprete, mas ele irá se deslocando lentamente no interior de seu próprio curso, até a busca de uma interpretação relativa ao real.
Na apresentação que realizou na Espanha, Miller indica que o “sentido” foge como um objeto perdido que não se pode recuperar, e se detém na dupla acepção de fuite em francês: vazamento e fuga. É por isso que Lacan enfatiza em seus textos, que a fuga é de um tonel e que não se trata de escapada. Não é possível capturar o sentido, já que sempre foge. Como entendê-lo?
A fuga do sentido é um real; ainda que se associe habitualmente o real com o que não muda, Miller indica que “Aqui é a fuga o que não muda, que é como tal uma coisa imóvel e inamovível: é um real. Parece-me que o esforço de Lacan é pensar o real a partir da fuga e deste vazamento. A fuga é o real do sentido”.
Esta fuga estrutural do sentido como real, testemunha o impossível da relação sexual, já que o sexual se desloca como o sentido.


Em sua última aula, Miller finalmente decide denominar seu curso com este título, já que considera que é “como um rastro no labirinto” no qual se introduziu com o último ensino de Lacan. Retoma assim o ponto que havia deixado no ano anterior em Silet e em Barcelona, dando-lhe uma maior amplitude.

 

2. Em que momentos o retoma em seu curso?
Podemos pontuar ao menos cinco momentos de desenvolvimentos relativos à fuga do sentido.
Em primeiro lugar, apresenta sob a forma do lugar escorregadio do sentido, da impossibilidade de capturá-lo, a ponto de, se não vazar, não é sentido. Destaca então o co-pertencimento entre o sentido e sua fuga.
Também diz: “Temos aqui também, operando e representando, o Begriff (termo retomado em seu curso El ultimísimo Lacan), a captura que Lacan neste escrito desvaloriza com o nome de tonel... e além disso, tonéis estilo Danaides, ou seja, tonéis com vazamentos, vale dizer, tonéis que não retêm o sentido".


Em segundo lugar, retoma a frase de Lacan que apresenta o enigma, como o cúmulo do sentido e sua vinculação com sua fuga. Diz: “é o exemplo de onde é visível a fuga do sentido porque o sentido não aparece fechado na combinatória significante-significado”. O exemplo do enigma exibe o furo por onde o sentido foge. Já que o furo da fuga do sentido não conta com um efeito de tampão significante, mas aponta para o real.
Em terceiro lugar, explica porque o tonel em questão é o das Danaides, e relata a história: “Elas vão extrair água dos poços que, sem parar, perdem” (Ovídio, Metamorfosis, verso 463). Este é o castigo que recebem as cinquenta Danaides por terem matado seus maridos, como obediência ao pai.


Em quarto lugar estuda como se apresenta na “tautologia” e na “definição”, e como em ambos os casos não se consegue capturar o sentido. Continua no terreno literário e evoca o texto de Barthes, escrito a partir da leitura do romance Sarrasine de Balzac, por ser um enfoque “erudito e moderado” da fuga do sentido. A história de Sarrasine é a de um escultor que se apaixona tragicamente por um cantor castrado, pensando que era uma mulher. Roland Barthes, no estudo deste texto em seu curso de 1968-69, formula que o leitor não é somente um consumidor, mas também um produtor do texto, por isso postula que a leitura deve converter-se em escrita, reescrevendo aquilo que se lê. A leitura é um trabalho de encontrar sentidos e nomeá-los de outro modo, em um deslizamento metonímico que nos constitui. A fuga do sentido é exemplificada desse modo, através da reescrita incessante por parte de cada leitor.


Finalmente, em quinto lugar, retoma a fuga do sentido para relacionar o sentido e a verdade. A verdade é um dos nomes do sentido que desliza, mas que, ao mesmo tempo, se deteria como verdade. Diz: “A fuga do sentido supõe certa depreciação da verdade e vem enunciar que não há sentido absoluto”. A palavra “verdade”, de alguma maneira desaparece a partir da “Introdução alemã...”, diz Miller, já que simplesmente equivale ao sentido. A busca da verdade é um véu do real que é a ausência da relação sexual”.


Ao chegar a esse ponto, Miller inicia seu comentário do Seminário 20 e da lógica que se desprende da oposição entre o “querer dizer” e o “querer gozar”. Este trabalho prosseguirá no decorrer de seus cursos ulteriores, destacando a oposição entre a verdade e o real, ou entre o efeito de sentido e o efeito de furo, de acordo com os distintos binários que estuda.


3. Qual é sua relação com a interpretação?
J.-A. Miller se questiona acerca da interpretação em psicanálise no decorrer de todo o curso. Em grande parte este é um texto sobre a interpretação. Para isso estuda cuidadosamente os três tempos que situa em relação à teoria da interpretação: 1) “Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise” (1953); 2) O Seminário 11 (1964); e 3) O Seminário 20 (1971-72).


O inconsciente-intérprete é o ponto de partida de sua análise, porém continuamente vai pontuando a necessidade de buscar uma interpretação, que já não aponte nem à verdade nem ao sentido, senão ao real. Questiona-se então: Por acaso não será necessário começar situando em seu lugar certa impotência do efeito de verdade, em relação com o gozo?”. O desaparecimento dos oráculos, o anúncio da morte do Gran Pan, vão nessa orientação, e ele acrescenta: “Se esse ocaso da interpretação inquieta, é porque deixa pressagiar que o Gran Pan da psicanálise morreu”. Fica em suspenso até onde se desloca então, o lugar desta verdade.


Miller pontua como Lacan vai abandonando sucessivamente suas teorias da interpretação, sem que isso signifique que desapareça completamente seu uso na prática analítica. A teoria que a articula com o significante e o significado em “A instância da letra...” desfalece. A teoria da interpretação do Seminário 11 aponta ao desejo e se limita a extrair os significantes sem sentido, mas não extrai as conseqüências da formulação do objeto a: a sexualidade, o pulsional, fica à espera. É por isso que Miller diz que, ainda que Lacan amplie e modifique sua definição do inconsciente neste Seminário, a interpretação fica pendente. O Seminário 20 produz uma mudança de perspectiva, na medida em que articula o inconsciente com um querer gozar, e já não com um querer dizer solidário à comunicação.


A disjunção, a antinomia entre o Outro e o gozo coloca a interpretação em questão.


Diz Miller: “Temos nesse seminário um percurso que conduz a uma espécie de real que se torna então primordial, e que é esse gozo que sustenta e que ao mesmo tempo está velado pelo objeto a e o Outro com maiúscula”. Ambos os conceitos, objeto a e Outro, tornam-se semblantes que se substituem uns aos outros.
Miller já havia se perguntado acerca da interpretação quando desaparece a finalidade da comunicação e a intervenção do analista se situa no nível de lalingua, quando a finalidade é o gozo. Nessa orientação, a interpretação já não aponta para o significante, mas para o objeto a e indica a necessidade de articular a interpretação com o real.


Tem mais, diz: “Chamamos interpretação àquilo que nesse mundo do Um faz surgir o Outro. Isto implica que nos separemos um pouco da temática habitual da interpretação, onde sempre é concebida como escuta, como tradução, como leitura, como deciframento”. Aponta-se assim para um despertar.

 

4. Qual é o destino da fuga do sentido nos cursos ulteriores de Miller?
O enlace com o real é o ponto de desembocadura do curso "A fuga do sentido", mas também é  início da busca de um tema claramente trabalhado, porém não resolvido completamente nestas aulas centradas, em especial, na leitura do Seminário 20.


Anos mais tarde, Jacques-Alain Miller retoma esta questão em distintos lugares, particularmente em El ultimísimo Lacan (2006-2007), Sutilezas analíticas (2007-2008), a partir da oposição entre o inconsciente transferencial e inconsciente real, e entre o efeito de sentido e o efeito de furo, entre a verdade mentirosa e o real.


Em El ultimísimo Lacan, J.-A. Miller estuda a passagem do Seminário 23 ao Seminário 24, vale destacar, o que prossegue ao último ensino de Lacan, e toma como referência o texto “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”. "Sutilezas analíticas" é o curso do ano seguinte em que desenvolve as questões levantadas no curso anterior e permite uma aplicação mais ampla ao tema da interpretação. Miller vincula ali a doutrina da interpretação a seu efeito de sentido, que atua sobre o sintoma, em contraposição a seu efeito de furo, que levaria a elaborar um “significante novo” que, como o real, não tenha nenhum sentido.


Em Sutilezas analíticas Miller parte do inconsciente real, desenvolvido no ano anterior em contraposição ao inconsciente transferencial, que não se deixa interpretar, já que se trata do lugar do gozo opaco ao sentido, que só se torna charlatão através do trabalho de historização da análise. Destaca então que não se trata da substituição de um sentido por outro, senão de fazer vibrar o gozo. A mudança de perspectiva da interpretação, propõe desfazer a articulação do destino produzido pela transformação da contingência em articulação, e apontar ao fora de sentido. Desse modo, a interpretação é uma operação de desarticulação. O binômio aqui estudado é a oposição entre a verdade mentirosa que se pluraliza no decorrer da análise através de distintos sentidos, e o que constitui verdadeiramente o resíduo do sentido, que é o real. A interpretação de gozo aponta para as formas contingentes com que se vela a ausência da relação sexual. Mas como não há uma verdade sobre o gozo, tratar-se-á de estudar o efeito corporizado de gozo da interpretação, que no curso anterior tomou como as ressonâncias no corpo, os ecos do dizer sobre o corpo.


Mesmo que a referência ao tonel e sua fuga não voltem a ser retomados em seus cursos, a oposição entre o real e o sentido fica mais desenvolvida, de tal modo a introduzir uma nova ressonância e poética da interpretação.

 

Buenos Aires, maio de 2013.
Tradução: Daniela Nunes Araújo
Revisão: Elisa Alvarenga

 

 

Seminário de Leiturado Curso de Orientação Lacaniana
Perversão, corpo e imaginário

Responsáveis:Jésus Santiago, Ram Mandil e SérgioLaia

 

O imaginário é o corpo - 28.08.2014 – Jésus Santiago

É inegável que o imaginário, no início do ensino de Lacan, assume um valor de um obstáculo, nada favorável para o avanço da experiência da análise. E quando os efeitos do imaginário se interpõem, no curso do tratamento, arruma-se um meio para dele escapar. Movido pelas diretivas da primeira clínica, o analista foge do imaginário igual o diabo foge da cruz! Isto se justifica pelo modo como a parte mais clássica deste ensino toma o imaginário como submetido às determinações do simbólico. Com o último ensino e, particularmente, com a postulação do nó borromeano, pode-se dizer que Lacan devolve ao imaginário sua dignidade, e faz o mesmo com o simbólico e o real. O nó borremeano com os seus três aros de barbante, homogeiniza os três registros e defaz qualquer tipo de hierarquia entre eles. Frente à erradicação da hegemonia da ordem simbólica a respeito do imaginário,  emerge a formulação de que “o imaginário é o corpo”.  Pode-se, inclusive, perguntar se afirmação– O imaginário é o corpo – tem uma existência ipsis literis nos escritos ou nos seminários de Lacan. Até o momento, eu mesmo não pude localizá-la, apesar de ter vasculhado em toda parte, inclusive, com a ajuda de alguns colegas. No entanto, ao se levar algumas construções do último ensino de Lacan, é possível deduzir uma tal formulação que, a meu ver, carrega um teor clínico incomensurável, sobretudo, com relação ao final de análise. Com relação ao final de análise, o meu ponto de vista é que, esse imaginário que se deduz da clínica borremeana, desempenha um papel crucial no saber-fazer com o seu parceiro-sintoma.  É para discutir o alcance clínico da tese de que "o imaginário é o corpo", propugnada pelo último ensino de Lacan, que vamos nos encontrar hoje à noite, às 20:30, na sede da EBP-MG, para abertura do Seminário de Orientação Lacaniana, neste segundo semestre de 2014. 

 

Ter um corpo para adorar é a raiz do imaginário– 25.09.2014 – Ram Mandil

Neste próximo Seminário daremos sequência às questões suscitadas pelo  tema “O imaginário é o corpo”, apresentado por Jésus Santiago em nosso último encontro.   Retomaremos a passagem da p.64  do  Seminário 23 O sinthoma, em especial  a referência à crença do falasser (parlêtre) em seu corpo como fundamento para a sua adoração,  adoração  esta sobre a qual  Lacan localiza  “a raiz do imaginário”.  Neste encontro daremos destaque à tese de Lacan de que “a adoração é a única relação que o falasser tem com o seu corpo”, considerando que a todo  momento esse corpo tende a  “sair fora”.  


Como entender essa adoração do corpo? De que maneira ela lhe confere  consistência, “uma consistência mental”?  Examinaremos esta questão a partir do comentário  de Lacan sobre o episódio da surra sofrida pelo personagem Stephen Dedalus, em Um retrato do artista quando jovem. Neste episódio temos um exemplo de uma  imagem corporal que se desenlaça dos outros registros.  Lacan se interroga porque esse episódio não deu lugar a uma fantasia masoquista por parte daquele que foi espancado.  Essa pergunta nos permite inferir que, para Lacan,  o acionamento da fantasia pode ser entendido como  um modo de conferir consistência a um corpo.  Seguindo essa perspectiva, vamos examinar a hipótese  da fantasia como um modo  de adoração do próprio corpo, em especial aquela que caminha pelo registro do masoquismo. Em outras palavras: não seria o masoquismo uma forma de adoração do próprio corpo, um modo de assegurar-se de ter um corpo?  Faremos referência a outros exemplos clínicos de corpos que saem fora – do "deixar largado" (liegen lassen)  de Schreber, à alucinação do dedo cortado do Homem dos Lobos –  para examinarmos essa hipótese.