Extimid@des 19

 

Muitas das críticas feitas pela sociedade americana à Psicanálise levam um tom de ceticismo ingênuo, achando que a fronteira entre o que é ciência e o que é pseudo ciência se resume a uma questão de quantificação e formalização no modelo verdadeiro ou falso. Convidamos esse mês nosso colega Adriano Aguiar para comentar uma matéria recente do New York Times sobre o livro Shrinks, de Jeffrey Lieberman. Aproveitamos para desejar à Adriano nossos votos de um excelente trabalho, já que a partir do mês que vem ele passar a ser o editor da rubrica Extimid@ades.

 

 

O artigo que Marcelo Veras me convidou para comentar não foi escrito por qualquer um. A jornalista Natalie Angier, que o assina, foi ganhadora do Pulitzer Prize em 1991, por seu reconhecido trabalho sobre diversos tópicos em ciência e atualmente escreve no New York Times sobre este assunto. No artigo que comento, ela faz uma resenha sobre o último livro do psiquiatra Jeffrey Lieberman, presidente da Associação Americana de Psiquiatria (APA) entre 2012 e 2014, cujo título é Shrinks: The Untold Story of Psychiatry.

 

Link para o artigo: http://www.nytimes.com/2015/03/29/books/review/shrinks-by-jeffrey-a-lieberman-with-ogi-ogas.html

 

A estrutura do texto da jornalista também já é bastante conhecida. Desde a década de 1980, matérias assim se repetem insistentemente nos jornais, revistas e programas de TV do mundo todo. Para não parecer que está falando sobre algo que desconhece, ela começa lembrando o terrível período em que ela própria passou no divã, gastando seu tempo e dinheiro com um tratamento que não adiantou nada, e cujas pesquisas científicas atuais demonstram ser ineficaz. Segue então a apresentação do livro do Dr. Lieberman que tem a pretensão de contar a verdadeira história da psiquiatria. O "untold" do título não deixa dúvidas: ele irá falar do que considera os dejetos da história da psiquiatria até que finalmente esta pudesse alcançar a glória atual. Na verdade a história toda serve sobretudo para atacar a psicanálise, que é descrita pelo autor como uma "praga na medicina americana, que infectou cada instituição psiquiátrica com sua ideologia dogmática e anti-científica". Freud, por sua vez, é caricaturado como um guru que "exigia total lealdade à sua teoria, fossilizando uma teoria científica dinâmica e promissora numa religião petrificada".

 

Fui pego de surpresa pelo convite de Marcelo, pois ainda não havia ouvido falar nem do livro nem da resenha. Fui prontamente para internet procurar o livro para ler, o que prova que esta coluna extimid@des cumpre bem o seu papel entre nós.

 

Uma coisa que chama a atenção, é como o debate crítico sobre o estado atual da psiquiatria é surpreendentemente muito mais robusto nos EUA do que no Brasil ou na Europa. Um simples passeio pela Amazon.com mostra que existe uma infinidade de livros que discutem de maneira muito qualificada, o estado atual da psiquiatria. Logo que entrei na loja virtual para procurar o livro do Dr. Lieberman, já encontrei diversos comentários dos próprios consumidores da loja, o que mostra que lá, a coisa já deixou de ser um debate apenas entre especialistas (psiquiatras x psicanalistas, psiquiatras x anti-psiquiatras). É a própria Cidade que está no debate, em debate. Por exemplo, o leitor "Peter J" avalia o livro do Dr. Lieberman com 1 estrela apenas, e faz o seguinte comentário:

 

"Ao ler este livro você poderia pensar que todas as pessoas que foram tratadas com medicamentos psiquiátricos foram milagrosamente curados e que ninguém foi afundado na miséria ou pior. Não há menção a milhões de prescrições escritas para tratar distúrbios questionáveis ??para crianças a partir dos dois anos de idade, ou dos efeitos colaterais terríveis da alguns dos medicamentos poderosos que Dr. Lieberman evidentemente dispensa a praticamente todos os pacientes que entram em seu escritório. Você poderia ainda concluir que ninguém nunca foi ajudado pela psicanálise, nem por qualquer outra forma de terapia além da dele. Este é um livro cheio de meias verdades, omissões, distorções e propaganda. De fato é 'a história não contada da psiquiatria'".

 

Outra leitura muito interessante com a qual esbarrei ao procurar o livro na internet, foi a resenha feita por Robert Whitaker, jornalista que também foi finalista do Pulitzer Prize, devido a diversos artigos que escreveu sobre pesquisas em psiquiatria e cujo livro sobre diagnósticos psiquiátricos e medicalização, Anatomy of an Epidemic, ganhou o prêmio de melhor jornalismo investigativo do Investigative Reporters and Editors Book Award, em 2010. Para Whitaker, a pequena nota promocional na capa do livro já dá o tom do que vem pela frente: "true heroes... who dared to challenge the status quo."

 

 

Whitaker acabou de publicar um novo livro em abril, cujo título é Psychiatry Under the Influence: Institutional Corruption, Social Injury, and Prescriptions for Reform, onde examina a forte influência da indústria farmacêutica na APA e na psiquiatria americana de modo mais amplo. Para isto, fez uma revisão de todos os discursos dos presidentes da APA desde 1980. Uma das coisas que chamaram sua atenção foi a frequência com que aparece este tema de que os psiquiatras são verdadeiros heróis, que tiraram a psiquiatria atual do deserto intelectual em que se encontrava quando a psicanálise era sua principal influência.

 

De fato, a APA é como se fosse uma FIFA do campo da saúde mental, e o livro Shrinks apenas reproduz a história que esta instituição vem contando ao mundo desde o lançamento do DSM-III em 1980: que os transtornos do DSM-III são verdadeiras doenças do cérebro, que os medicamentos psiquiátricos são bastante seguros e altamente eficazes e que os pesquisadores estão fazendo grandes avanços na descoberta da biologia das doenças mentais. Absolutamente nada sobre inúmeras pesquisas e artigos publicados em revistas médicas do mundo todo falando sobre a eficácia duvidosa dos antidepressivos, sofre efeitos colaterais graves dos antipsicóticos, sobre envolvimento inescrupuloso dos psiquiatras com a indústria farmacêutica, nem  sobre o excesso de diagnósticos, a ponto do Dr. Mario Maj, presidente da World Psychiatric Association, ter dito recentemente que se a psiquiatria não cuidasse disso, perderia toda sua credibilidade social.

 

 

Talvez isto revele a verdade desse livro. Seria ele uma resposta quase publicitária da APA à crise da sua psiquiatria, cujo ápice foram os intensos ataques sofridos pelo DSM-5 no ano passado? Se a psicanálise fosse de fato apenas uma fase negra, ultrapassada na história da psiquiatria por que ainda essa necessidade insistente de combatê-la?

 

Dr. Lieberman lançou um vídeo na internet para divulgar seu livro. Lá ele se apresenta para as câmeras com um típico jaleco branco e uma chique caneta no bolso, onde estão escritas as credenciais profissionais que o autorizam a falar em nome do discurso do mestre. Na capa do seu livro, no entanto, o que aparece é um belo divã vermelho. Não deixa de ser curioso que para vender seu livro ele tenha escolhido esta imagem. No fundo ele sabe que tem algo de ineliminável no valor agalmático do enigma, do amor e do sexo para a psiquiatria.

 

Adriano Aguiar

 

Colaboraram com a coluna Extimid@des Maria Bernardette Pitteri, Luiz Felipe Monteiro,  Niraldo Santos e Bia Dias