Dobradiça de Cartéis

Setembro de 2014

DOBRADIÇA DE CARTÉIS Nº 14

Boletim eletrônico dos cartéis da EBP

 

Dobradiça de Cartéis

 

 

Editorial

 

O Cartel e sua inserção particular nas políticas da Escola

Elza de Freitas

 

O termo políticas no plural faz referencia ao fato de que a Escola, se é Una em seus princípios, é múltipla em suas inserções locais, regionais, numa amplitude que atualmente faz volta ao mundo. O Cartel também, em seus princípios é Uno, pois tem como raiz inextirpável a proposta da diferença, da singularidade, assim como lhe é inerente a proposta de colher de cada um que nele se insira alguma construção que contribua para a psicanálise pertinente ao edifício conceitual criado por Lacan. E, mais ainda, o Cartel é uma fonte geradora de energia que propulsiona movimento e enlaça o dentro e o fora da Escola. Cartel é incomodo, é pedra no sapato, espinho no calcanhar. Às políticas locais fica então a faculdade de dar ao Cartel, num momento dado, as características que venham a servir ao instante institucional. Por exemplo, qual o aspecto da instituição está no momento necessitando de impulso ou reforço – seja o estímulo aos Núcleos, que acabam por ter produção muito rica e que impulsiona a comunidade ao trabalho; seja na convocação ao ensino por conta e risco; seja num esforço conjunto, como é feito junto aos Institutos, e assim por diante.


Com a tendência atual, rica em seus princípios, de que a Escola e os Institutos locais se aproximem o suficiente para terem a mesma configuração em suas direções, somos levados a pensar que o lugar de diferença e separação, já sendo seu por definição, cabe ao Cartel.


Separação que lhe é peculiar no formato da fita que une e separa. Reduto absolutamente próprio aos princípios de não identificação e não cola que Lacan nos legou. Ao Cartel não cabe jamais o papel de se agigantar, nem tampouco o de desaparecer. Jamais terá força de poder decisivo e sempre terá potência para gerar movimento e desconfortar a tendência à cristalização. Não é preciso "aumentar" o Cartel, a não ser talvez no seu princípio de colher a produção da comunidade. Mas também talvez não seja o caso de "encolher" o Cartel ou de tentar tolher-lhe a expansão de produção. O que lhe poderíamos imputar como negativo então? Produção heterogênea em qualidade? Desnível dos trabalhos colhidos? Mas se é para isso que foi criado?!


Daí a alegria com que acolhemos o espaço que foi oferecido ao Cartel no Encontro Brasileiro em Minas Gerais no final desse ano.


Não percamos de vista que o Cartel é aberto à comunidade mais ampla e todos temos notícias de colegas já com muito percurso na psicanálise que, embora tenham sua pertinência em outras instituições, participam de nossos Cartéis e com isso se enriquecem e nos enriquecem. Nem percamos de vista também que para ouvidos atentos e abertos, tal como vimos na Jornada de 2013 no Rio de Janeiro, muitos trabalhos interessantes são apresentados por cartelizantes jovens e, portanto, abertos à novidade.


O Instituto colhe pensamentos que surgem em andamento e vigor balizados em programas muito bem cuidados. O Cartel colhe perguntas em vários níveis toda vez que o cartelizante ali se assenta em posição de não saber, seja qual for seu percurso. No Rio de Janeiro, dada a quantidade e a excelência da oferta de atividades, a não ser um trabalho interno ligado à procura e constituição de Cartéis, resumimos a atividade dessa Diretoria, na parte de Cartel, a um só evento por ano – A Jornada de Cartel. Essa foi a forma local de lidarmos com a gestão para os Cartéis até 2015.


O principal é que se tenha em mente que o Cartel é destinado a servir a dois patrões, um que gere e organize, e outro que geste e irrompa, e, com ambos, a Psicanálise se enriquece. Como podem perceber bem, é árdua e estimulante a tarefa desse dispositivo inédito.

 

Intercâmbios

Efeitos do trabalho em Cartel: uma nova sede na EOL

Conversa com Ana Ruth Najles

Por Valéria Ferranti, com colaboração de Silvia Jacobo

 

Nas XXII Jornadas Anuais da EOL, em 2013, uma das mesas simultâneas intitulada "Escuela y formación analítica, cartel y Escuela: efectos de formación analítica en el siglo XXI", presidida por Ana Ruth Najles (atual presidente da EOL), lotou a sala com jovens entusiasmados com a experiência ocorrida na cidade de La Plata. Cartéis constituídos a partir do MOL – Movimiento de la Orientación Lacaniana – explicitaram a articulação epistêmica e política deste dispositivo inventado por Lacan e trouxeram, além da produção própria dos integrantes dos Cartéis, depoimentos da participação deste movimento político que culminou com a fundação de uma nova seção da EOL.


A seguir, a conversa com Ana Ruth Najles, que gentilmente aceitou comentar sua participação, do lugar de membro do Conselho da EOL, nesta experiência.

 

Valéria Ferranti: Nas últimas Jornadas da EOL, uma mesa que você coordenou, foi destinada à produção dos Cartéis formados na cidade de La Plata.


Jovens participantes da mesa e do público transmitiam com entusiasmo a relação entre o trabalho nos Cartéis e a formação de uma nova Seção, o que me pareceu surpreendente. O trabalho nos Cartéis antecipou, precipitou a criação da Seção, o que demonstra o lugar de "órgão de base", político, deste dispositivo proposto por Lacan há 50 anos.


Você poderia transmitir à comunidade analítica brasileira a experiência do Movimento da Orientação Lacaniana (MOL), sua articulação aos Cartéis e o efeito que isto produziu?

 

Ana Ruth Najles: Estimada Valéria, me agrada muito poder conversar com vocês a respeito da pergunta que me formulam, contudo, em primeiro lugar devo dizer que não participei diretamente do MOL em La Plata. De qualquer modo, e a partir do acompanhamento que fiz desse movimento desde meu lugar de integrante do Conselho da EOL, posso dizer-lhe que o trabalho em Cartéis foi fundamental para poder constituir-se um espaço comum de transferências de trabalho. E digo espaço comum porque no MOL confluíram pessoas que vinham de distintos grupos psicanalíticos da cidade de La Plata, além de outras que não participavam de nenhum desses grupos, mas que têm seu trabalho em tal cidade.


Foi decisivo o trabalho em Cartéis, que para Lacan é o órgão de base da Escola e constitui uma de suas portas de entrada, o que permitiu ir mais além das identificações grupais. Isto é assim porque nos Cartéis se trata da produção própria de cada um, além de qualquer identificação, e ainda, em função do desejo de cada um em relação à Causa analítica. Esses Cartéis permitiram que trabalhassem juntas pessoas que até esse momento não haviam podido fazê-lo em função das separações grupais. Deste modo, produziu-se uma transferência de trabalho inédita que redundou em um desejo de Escola que nunca havia podido concretizar-se, até agora.

 

Valéria Ferranti: É uma experiência que demonstra o lugar do Cartel como resposta possível aos efeitos de grupo, um lugar de laço e produção (como disse Gustavo Stiglitz).


Sua participação se deu a partir do Conselho da EOL: como foi esta decisão no seio mesmo da Escola, inclusive a de realizar uma Jornada anual de Cartéis na cidade de La Plata?

 

Ana Ruth Najles: Antes de mais nada devo dizer que quem conduziu a experiência do MOL La Plata desde a EOL foram Mauricio Tarrab e Adriana Testa, a princípio, como integrantes do Conselho da Escola nesse momento. Eles, junto de alguns integrantes dos grupos locais, foram armando e levando adiante esse movimento. Talvez fosse mais interessante para vocês conversar diretamente com alguns deles.


No que me diz respeito, posso dizer-lhe que o Conselho decidiu que a Jornada Anual de Cartéis da EOL ocorresse na cidade de La Plata como modo de dar apoio ao dito MOL. O trabalho levado adiante por pessoas de diferentes grupos de La Plata junto aos responsáveis da Secretaria de Cartéis da EOL e os do MOL, afiançou os laços de trabalho e precipitou o acordo para chegar a poder fundar a Seção da EOL nessa cidade.


Até aqui é o que posso transmitir-lhes sobre tal experiência!!!


Valéria Ferranti: Estimo muito esta conversa com você e por isso lhe peço se poderia fazer algumas considerações sobre o Cartel entendido como um dispositivo que articula política e episteme. Poderia nos transmitir sua experiência neste dispositivo considerando a formação do analista?

 

Ana Ruth Najles: Parece-me que o Cartel é fundamental na formação do analista, porque, como você diz em sua pergunta, articula política e episteme. Por isso é que Lacan coloca o Cartel como uma das portas de entrada da sua Escola no Ato de fundação de 1964. Há que se ter em conta que nesse momento Lacan colocava o acento no trabalhador decidido como integrante da Escola. E o Cartel é um lugar de trabalho indubitável. Dizer que enoda política e episteme, além disso, supõe afirmar que enoda a política do desejo do analista com a transmissão da psicanálise no trabalho realizado com outros. Como afirmava Lacan também nesses anos, a psicanálise se transmite de um a outro pelas vias de uma transferência de trabalho e como afirma que o analista não pode estar só para a transmissão da psicanálise, funda sua Escola. É assim, que coloca o Cartel como um dos lugares privilegiados no qual se efetua esta transferência de trabalho fora da análise. Para mim sempre foi muito frutífero trabalhar em Cartel com outros, seja como Mais-Um ou não! Abraços!


Tradução: Cristiana Gallo
Revisão: Paola Salinas

 

EBP-RIO

A praxe1 e o Cartel

Elza de Freitas

Dispensando as preliminares que supõe o desconhecimento total do que é um Cartel, irei direto ao que importa nesse pequeno texto. O Cartel e sua prática efetiva em nossas comunidades e a viscosidade do imaginário. E isso, finalmente, vai girar em torno do papel dos Mais-Uns. Veremos o quanto a praxe estabelecida pode se distanciar da práxis (aqui tomada apenas como conduta ou prática), da qual deve advir a produção de saber que se espera dos Cartéis. Produção a ser exposta, mas antes disso, produção que deve se dar no pensamento emergente dos participantes do Cartel, um a um.


Criou-se um modo de funcionamento em que, de modo geral, como praxe, os colegas que são escolhidos para Mais-Um acabam sendo aqueles que tem uma posição muito estabelecida na comunidade. A escolha é feita como um modo de prestigiar o/a escolhido, como forma de erigir um falo, numa espécie de reconhecimento de um valor maior inerente a aquele colega. "É uma honra ter X como Mais-Um e ele também se sente honrado pela escolha de seu nome". O jogo imaginário dos espelhos agracia a todos com essa mais-valia.


Ora, realmente do Mais-Um se espera muito. Espera-se que saiba muito sobre Escola, sobre seus fundamentos, sobre o Cartel e seus princípios. Que saiba sobre por que Lacan cria esse eixo, que na origem foi instaurado pela autoridade hierárquica, mas que por sua determinação intrínseca ganha autonomia. Abre-se no ato fundante um espaço horizontal, mantendo assim em aberto o alcance do saber. Sim, pois ao pensar o Cartel Lacan propõe um trabalho voltado, simultaneamente, para a produção da psicanálise enquanto saber e para a política da Escola enquanto prevenção para o anquilosamento e a burocracia.


Não é o único dispositivo para tal mister. O outro principal dispositivo fundamental para essa função que produz a diferença é o Passe. Lembramos aqui que o Passe, por ser dimensão viva da psicanálise da Escola, sofreu modificações. O Cartel então tem sido trabalhado entre nós em suas possibilidade e limites. Daí as novas formas que podem tomar como, por exemplo, Cartéis estendidos, Cartéis fulgurantes e outras mais.
No entanto, quero retomar aqui o dado que fica como espinha dorsal para que algo possa ser chamado de Cartel. Não é uma única invariável, com certeza. Mas é aquela que, a meu ver, tem que ser sempre lembrada e afirmada. Em nome disso o Cartel está no texto fundante da Escola. Por mais que o Cartel assuma outras formas, a Escola só se diferencia de outras formações em outras instituições por aquilo que nela representa furo na verticalidade. Para isso, o Cartel em funcionamento interpreta a Escola. Cabe à Escola interpretar o Cartel quando o funcionamento do mesmo se burocratiza ou passa a servir à hierarquia. É necessário nesse momento que a vontade Política se manifeste localmente e na Orientação Lacaniana. Há um trabalho regular a ser feito, pela Escola, junto aos Mais-Uns. Temos que sempre buscar esse diferencial inclusive a partir do "Ultimíssimo Lacan".


Essa condição à que fazemos referência em algumas das reflexões acima, se dá com frequência quando o lugar de Mais-Um é recoberto imaginariamente pela condição de mestria, sendo esta fundada sobre o reconhecimento de um saber acumulado, mais do que sobre um saber vinculado à possibilidade de sustentação subjetiva da diferença. Um convite à função de Mais-Um feito para que alguém encarne o furo exige um trabalho dobrado, já que terá de ficar o tempo todo se descolando dessa posição em que está sendo colocado. E de outro lado, justamente, deverá promover o descolamento permanente dos sujeitos em trabalho para garantir a singularidade. Segue-se que é importante que um participante de notório saber, por exemplo, possa estar em um Cartel na posição de apenas ser um cartelizante. E que possa estar em outro Cartel na posição de Mais-Um, e assim por diante.


Essa é uma dimensão da função do Mais-Um. Entre todas as exigências do trabalho de um Mais-Um, a mais importante é a de que aquele que ocupe essa função seja capaz de não saber. O que lhe é exigido enquanto saber se desdobra em duas dimensões, quais sejam: 1. Que seja capaz de por em suspenso o saber acadêmico ou de leitura que por acaso possua. 2. Que, ao contrário, mantenha a sustentação do saber difícil e bem específico que lhe é pedido nessa posição, exatamente o de saber muito sobre Cartel e sobre sua função de Mais-Um. Esse segundo ponto se sustenta no percurso de análise, feito ou ainda em andamento pelo sujeito que ali encarna o Mais-Um. Ao Mais-Um cabe a garantia de que Cartel produza Cartel.


O Cartel em todas as suas instâncias não há de se prestar ao prestígio e ao poder. Claro que há, no entanto, a possibilidade do reconhecimento legítimo da condição preenchida por um, que sendo qualquer um será alguém, portanto sujeito desejante, cuja posição subjetiva alcançada lhe permita cumprir bem sua tarefa. Para que seu desejo compareça lhe é pedido também que se comprometa com um tema, do mesmo modo que os demais.


Aqui também, por tanto, a ferramenta principal é a analise pessoal e a posição subjetiva que cada um pode sustentar. Um lugar a ocupar onde então será balizado o Cartel na política e na Orientação Lacaniana.
E se tudo mudar? Se, por exemplo, o "Ultimíssimo ensino" revirar tudo? Sobrará sempre o princípio essencial, que é justamente o vetor do Cartel, como ponto permanente de reviramento. Onde esse princípio vigorar haverá Cartel. Dois eixos que se perfuram e tomam formas, dobras, desdobramentos, obras.

 

1 Entenda-se por praxe uma prática que funciona de modo automatizado.

 

 

Evento-Cartéis no XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano

Dias 21, 22 e 23 de novembro de 2014 em Belo Horizonte

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Por Lucas Fraga Gomes (Comissão de Cartéis da Delegação ES da EBP)

 

Seminários Jacques Lacan

Seminário 10 

 

"Há sempre uma outra coordenada, que enfatizei a propósito da intervenção analítica de Sócrates, ou seja, nominalmente, no caso que estou evocando, um amor presente no real. Nada poderemos compreender da transferência se não soubermos que ela também é consequência desse amor, desse amor presente, e os analistas devem lembrar-se disso no correr da análise. Esse amor se faz presente de diversas maneiras, mas que ao menos eles se recordem disso, quando ele estiver ali, visível. É em função desse amor, digamos, real que se institui o que é a questão central da transferência, aquela que o sujeito formula a si mesmo a respeito do agalma, ou seja, o que lhe falta, pois é com essa falta que ele ama. Não é à toa que lhes repiso desde sempre que o amor é dar o que não se tem. É esse, inclusive, o princípio do complexo de castração." (p.122).

"Para sublinhar isso com um referencial retirado de aspectos destacados da própria obra de Freud, é a identificação que se encontra, essencialmente, no princípio do luto, por exemplo. Como é que o a, objeto da identificação, é também o a, objeto do amor?" (p.131).

 

"É por isso que esse a, que não temos mais no amor, pode ser reencontrado, pela via regressiva, na identificação, sob a forma da identificação com o ser." (p.132).

 

"Porque a questão se esclarecerá totalmente se a tomarmos pela vertente de que falo, ou seja, pela função do desejo no amor. Vocês estão maduros para entender isso, que aliás é uma verdade conhecida desde sempre, mas à qual nem sempre se deu o devido lugar: na medida em que o desejo intervém no amor e é um pivô essencial dele, o desejo não diz respeito ao objeto amado." (p.170).

 

"[...] é que é preciso partir da experiência do amor, como fiz no ano de meu Seminário sobre a transferência, para situar a topologia em,que essa transferência pode se inscrever." (p.170).


"Só o amor permite ao gozo condescender ao desejo." (p.197).

 

"Não vai muito longe isso que pedimos – é a pequena morte –, mas, enfim, fica claro que a demandamos e que a pulsão está intimamente mesclada à demanda de fazer amor." (p.287).

"Esse além é almejado no amor. É um além, para dizê-lo corretamente, ora transverberado pela castração, ora transfigurado em termos de potência. O Outro masculino não é o Outro como um Outro a quem se trataria de estar unido. O gozo da mulher está nela mesma. Não se conjuga com o Outro." (p.331).

"Essa prudência, vocês sempre a encontrarão no obsessivo. No entanto, o amor assume para ele as formas de uma ligação exaltada. É que o que ele pretende que se ame é uma certa imagem sua. Essa imagem, ele a oferece ao outro. Oferece-a ao outro a tal ponto que imagina que este já não teria a que se agarrar se essa imagem viesse a faltar-lhe. Essa é a base do que chamei, em outro lugar, de dimensão altruísta desse amor mítico, que se fundamenta numa oblatividade mítica." (p.350).

"O problema do luto é o da manutenção, no nível escópico, das ligações pelas quais o desejo se prende não ao objeto a, mas à i(a), pela qual todo amor é narcisicamente estruturado, na medida em que esse termo implica a dimensão idealizada a que me referi. É isso que faz a diferença entre o que acontece no luto e oque acontece na mania e na melancolia." (p.364).

"Só existe amor por um nome, como todos sabem por experiência própria. No momento em que é pronunciado o nome daquele ou daquela a quem se dirige nosso amor, sabemos muito bem que esse é um limiar da maior importância." (p.366).

 

Seminário 11

 

"A transferência, na opinião comum, é representada como um afeto. Qualificam-na, vagamente, de positiva, ou de negativa. Aceita-se geralmente, não sem algum fundamento, que a transferência positiva, é o amor contudo é preciso dizer que este termo, no emprego que se faz dele aqui, é de uso inteiramente aproximativo.
Freud colocou, muito cedo, a questão da autenticidade do amor tal como ele se produz na transferência. Para dizer logo, a tendência geral é sustentar que ali se trata de uma espécie de falso amor, de sombra de amor. Freud, ao contrário, está longe de ter feito pender a balança neste sentido. Não é um dos interesses menores da experiência da transferência colocar para nós, mais adiante, talvez, que nunca se pôde carregá-la, a questão do que chamamos amor autêntico, eine echte Liebe." (p.119).

 

"Mas, confessem que se há domínio em que, no discurso, a tapeação tem em algum lugar chance de ter sucesso, é certamente no amor que encontramos seu modelo. Que maneira melhor de se garantir, sobre o ponto em que nos enganamos, do que persuadir o outro da verdade do que lhe adiantamos! Não está aí uma estrutura fundamental da dimensão do amor que a transferência nos dá ocasião de imajar? Ao persuadir o outro de que ele tem o que nos pode completar, nós nos garantimos de poder continuar a desconhecer precisamente aquilo que nos falta. O círculo da tapeação, enquanto que não nomeado, faz surgir a dimensão do amor – aí esta o que nos servirá de ponte exemplar para, da próxima vez, demonstrar seu contorno." (p. 128).

 

"Se estamos certos de que a sexualidade está presente em ação na transferência, é na medida em que em certos momentos ela se manifesta a descoberto em forma de amor. É disso que se trata. Será que o amor representa o vértice, o momento acabado, o fato indiscutível que nos presentifica a sexualidade no hic et nunc da transferência?" (p.165).

 

"A necessidade em que se acha Freud de se referir à relação do Ich com o real para introduzir a dialética do amor – enquanto que, propriamente falando, o real neutro é o real dessexualizado – não interveio no nível da pulsão. É isto que será para nós o mais enriquecedor, no que concerne ao que devemos conceber da função do amor – a saber, de sua estrutura fundamentalmente narcísica." (p.176).

 

"As pulsões nos necessitam na ordem sexual – isso, isso vem do coração. Para nossa maior surpresa, ele nos ensina que o amor, do outro lado, ele vem do ventre, é o que é rom-rom." (p.179).

 

"Tudo o que ele diz do amor vai acentuar que, para conceber o amor, é a uma espécie de estrutura diferente da pulsão que é preciso necessariamente referir-se. Essa estrutura, ele a divide em três níveis – nível do real, nível do econômico, nível do biológico por último." (p.179).

 

"O sujeito entra no jogo, a partir desse suporte fundamental – o sujeito é suposto saber, somente por ser sujeito do desejo. Ora, o que é que se passa? O que se passa é aquilo que chamamos em sua aparição mais comum efeito de transferência. Este efeito é o amor. É claro que, como todo amor, ele só é referenciável, como Freud nos indica, no campo do narcisismo. Amar é, essencialmente, querer ser amado.


Aquilo que surge no efeito de transferência se opõe a revelação. O amor intervém em sua função aqui revelada como essencial, em sua função de tapeação. O amor, sem dúvida, é um efeito de transferência, mas em sua face de resistência. Estamos presos em esperar esse efeito de transferência para poder interpretar e, ao mesmo tempo, sabermos que ele fecha o sujeito ao efeito de nossa interpretação. O efeito da alienação em que se articula na relação do sujeito ao Outro, o efeito que somos, é aqui absolutamente manifesto." (p.239).

"Enquanto miragem especular, o amor tem essência de tapeação. Ele se situa no campo instituído no nível da referência do prazer, desse único significante necessário para introduzir uma perspectiva centrada no ponto ideal, I maiúsculo, colocado em algum lugar do Outro, de onde o Outro me vê, na forma em que me agrada ser visto." (p. 253).

 

"Odesejo do analista não é um desejo puro. É um desejo de obter a diferença absoluta, aquela que intervém quando, confrontado com o significante primordial, o sujeito vem, pela primeira vez, à posição de se assujeitar a ele. Só aí pode surgir a significação de um amor sem limite, porque fora dos limites da lei, somente onde ele pode viver." (p.260).

 

"A transferência negativa, é-se mais prudente, mais temperado, na maneira que se tem de evocá-la, e não se a identifica jamais com o ódio. Emprega-se antes o termo ambivalência, termo que, mais ainda que o primeiro, mascara muitas coisas, coisas confusas cuja manipulação não é sempre adequada." (p.120).

 

Seminário 16

 

"Não entra em nosso tema estudá-la em detalhe. O importante é o que proponho: que alguma coisa nela se assemelha à Coisa, a essa Coisa que fiz falar, em sua época, sob o título de A Coisa freudiana. É por isso mesmo que lhe damos traços de mulher, quando a chamamos, no mito, de Verdade. Mas o que não se deve esquecer, e nisso está o sentido dessas linhas no quadro, é que a Coisa, ela mesma, decerto não é sexuada. Provavelmente, é isso que permite que façamos amor com ela, sem ter a menor ideia do que é a Mulher como Coisa sexuada." (p.224).

 

"Se tive o cuidado, em meu seminário sobre a ética, de dar grande importância ao amor cortês, foi porque ele me permitiu introduzir que a sublimação concerne à mulher na relação amorosa ao preço de constituí-la no nível da Coisa. Infelizmente, como não refarei tudo isso este ano, será preciso, para que vocês possam dar a esse ponto a importância que ele tem, se reportarem ao longo estudo que fiz, naquela ocasião, sobre o amor cortês." (p.224).

 

"Em todo caso, o amor cortês, ou pelo menos o que nos resta dele, é uma homenagem prestada pela poesia a seu princípio, isto é, ao desejo sexual. Em outras palavras, ainda que esteja dito no texto de Freud que, fora de técnicas especiais, o amor só é acessível sob a condição de sempre permanecer estritamente narcísico, o amor cortês é a tentativa de ultrapassar isso." (p.225).

 

"Há coisas que não apontei da última vez, mas espero que haja ouvidos receptivos, por exemplo, à ideia de que a sublimação é o esforço para permitir que o amor se realize com a mulher, e não apenas, enfim, para dar aparência que isso acontece com a mulher. Também não apontei que, nessa instituição que é o amor cortês, a mulher não ama, pelo menos em princípio, porque nada sabemos disso. Vocês se dão conta do alívio? Por outro lado, às vezes chega até a suceder, nos romances, ela se inflamar. Também vemos o que acontece depois. Nesses romances, pelo menos, a gente sabe para onde vai." (p.236).

 

Seminário 17

 

"A falta de esquecimento é a mesma coisa que a falta a ser, pois ser nada mais é do que esquecer. O amor à verdade é o amor a essa fragilidade cujo véu nós levantamos, é o amor ao que a verdade esconde, e que se chama castração." (p.49).

 

"Contudo, se nos reportarmos a Freud, a seu discurso de 1921 chamado Psicologia das massas e análise do eu, é precisamente a identificação ao pai que é dada como primária. É certamente bem estranho. Freud aponta ali que, de modo absolutamente primordial, o pai revela ser aquele que preside a primeiríssima identificação e nisso precisamente ele é, de maneira privilegiada, aquele que merece o amor." (p.82).

 

"A saber, a idéia de um pai todo-amor. E é justamente isto que designa a primeira forma da identificação das três que ele isola no artigo que eu evocava agora mesmo – o pai é amor, o primeiro a se amar neste mundo é pai. Estranha sobrevivência. Freud acredita que isso irá evaporar a religião, ao passo que na verdade é a própria substância desta que ele conserva com esse mito, bizarramente composto, do pai." (p.94).

 

"Yahvé se situa no ponto mais paradoxal em relação a uma outra perspectiva que seria, por exemplo, a do budismo, em que se recomenda purificar-se das três paixões fundamentais, o amor, o ódio e a ignorância. O que mais chama a atenção nessa manifestação religiosa única é que Yahvé não está desprovido de nenhuma delas. Amor, ódio e ignorância, eis, em todo caso, paixões que não estão ausentes de seu discurso." (p.128).

"Essa observação tem seu valor, e pretendo sublinhá-la com força em função da frase de Freud pela qual a relação analítica deve ser fundada no amor à verdade." (p.164).

 

"Bom, é sim, o homem se detém aí. Ele se detém nisso – em que ele, de fato, é alguém que saiba. Para fazer amor, pode-se passar e repassar, e sempre tropeçar. Nada é tudo, e vocês podem continuar fazendo suas brincadeirinhas, há uma que não é engraçada, que é a castração." (p.193).

 

Seminário 20

 

"O que, para vocês, eu gostaria de escrever hoje como a hainamoration, uma enamoração feita de ódio (haine) e de amor, um amódio, e o relevo que a psicanálise soube introduzir para nele inscrever a zona de sua experiência. Era, de sua parte, um testemunho de boa vontade. Se pelo menos ela tivesse sabido chamá-lo com outro nome que não esse, bastardo, de ambivalência, talvez ela tivesse tido mais sucesso em revelar o contexto da época em que ela se insere. Mas isto talvez seja modéstia de sua parte." (p.122).

 

"Esses seres, de que a letra se faz, vou lhes fazer sobre eles uma confidenciazinha. Eu não penso, apesar de tudo que se contou, por exemplo, sobre Lênin, que nem o ódio nem o amor, que a hainamoration, o amódio da enamoração, tenha verdadeiramente sufocado nenhum deles. Que não me venham com histórias a propósito da Senhora Freud! Sobre isto, tenho o testemunho de Jung. Ele dizia a verdade. Este, era mesmo o erro dele – ele não dizia senão isso." (p.132).

 

"[...] chamamos de ódio, quando os convidava de maneira pressionante a tomar parte numa leitura cuja ponta foi feita expressamente para me desconsiderar – o que certamente não é algo diante do que possa recuar alguém que não fala, em suma, senão da des-sideração, e que não visa outra coisa. É que, onde essa ponta parece aos autores sustentável, é justamente numa des-suposição do meu saber. Se eu disse que eles me odeiam, é porque eles me des-supoem o saber." (p.92).

 

"Havia um chamado Empédocles – como por acaso, Freud se serve dele, de tempos em tempos, como de um saca-rolhas – de quem só conhecemos sobre isto três versos, mas dos quais Aristóteles tira muito bem as consequências quando enuncia que, em suma, Deus era, para Empédocles, o mais ignorante de todos os seres, por não conhecer de modo algum o ódio. É o que os cristãos mais tarde transformaram em dilúvios de amor. Infelizmente isto não cola, porque não conhecer de modo algum o ódio é não conhecer de modo algum o amor também. Se Deus não conhece o ódio, é claro, para Empédocles, que ele sabe menos do que os mortais.


De sorte que poderíamos dizer que quanto mais o homem se possa prestar, para a mulher, à confusão com Deus, quer dizer, aquilo de que ela goza, menos ele odeia e menos ele é - e uma vez que, depois de tudo, não há amor sem ódio, menos ele ama." (p.120).

 

"Fiz notar, da última vez, que não é por nada que Freud se arma com o dito de Empédocles de que Deus deve ser o mais ignorante de todos os seres, por não conhecer de modo algum o ódio. A questão do amor e assim ligada a do saber. Eu acrescentava que os cristãos transformaram esse não-ódio de Deus numa marca de amor. É aí que a análise nos incita a esse lembrete de que não se conhece nenhum amor sem ódio. Muito bem, se esse conhecimento nos decepciona, que foi fomentado pelo curso dos séculos, e se precisamos hoje renovar a função do saber, é talvez porque o ódio nele não foi, de modo algum, posto em seu lugar." (p.122).

"Explicam para nós a infelicidade de Cristo por uma ideia de salvar os homens, eu acho que se tratava mais era de salvar a Deus, dando-se de novo um pouco de presença, de atualidade a esse ódio de Deus a respeito do qual nós somos, e por justa causa, mais frequentemente moles." (p.133).

 

"Que o ser como tal provoque o ódio, isto não está excluído. Certamente, todo o negócio de Aristóteles foi, ao contrário, conceber o ser como sendo aquilo pelo que os seres menos seres participam do mais elevado dos seres." (p.134).

 

"Não será que aí não se desnuda que, bem melhor do que atraí-lo fazendo-o um ser-de-ódio, é traí-lo ocasionalmente? E é aquilo de que, muito evidentemente, os judeus não se privaram. Eles não tinham outra saída." (p.134).

 

"Sobre esse tema do ódio, estamos tão sufocados por ele que ninguém percebe que um ódio, um ódio, sólido, ele se dirige ao ser, ao ser mesmo de alguém que não é forçosamente Deus. A gente fica – e é mesmo por isso que eu disse que o a é uma aparência de ser – na noção – e é aí que a análise, como sempre, é um pouquinho manca – na noção de ódio-ciumento aquele que brota do gozume, o gozo do ciúme, aquele que se imagenizaria com o olhar, em Santo Agostinho que a observa, o homenzinho." (p.135).

 

"É mesmo por isso que as duas outras paixões são as que se chamam amor – que nada tem a ver, contrariamente ao que a filosofia elucubrou, com o saber – e o ódio, que é mesmo o que mais se aproxima do ser, que eu chamo de ex-sistir. Nada concentra mais ódio do que esse dizer onde se situa a ex-sistência." (p.164).

 

"A abordagem do ser, não é aí que reside o extremo do amor, o verdadeiro amor? E a verdadeira amor – certamente não foi a experiência analítica que fez esta descoberta, cuja modulação eterna dos temas sobre o amor carrega suficientemente o reflexo – a verdadeira amor desemboca no ódio." (p.200).

 

Seminário 23

 

"É preciso efetivamente explicar o amor. Explicá-lo como um tipo de loucura é a primeira coisa que aparece." (p.72).

 

"Não é com isso que o homem faz amor. No final das contas, ele faz amor com seu inconsciente, e mais nada. Quanto ao que fantasia a mulher, se é mesmo isso que nos foi apresentado pelo filme, é alguma coisa que, de todo o modo, impede o encontro." (p.123).


"O nó bo é apenas a tradução do que me foi lembrado ainda ontem à noite: que o amor e, ainda por cima, o amor que podemos qualificar de eterno, se endereça ao pai, em nome disso, de ele ser o portador da castração." (p.146).

 

"A Lei da qual se trata, nesse caso, é simplesmente a lei do amor, isto é, a pai-versão." (p.147).

 

Livros

 

Ramos, Graciliano. Angústia. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003.
Goethe, Johann Wolfgang. Os sofrimentos do jovem Werther; tradução de Leonardo César Lack. São Paulo: Abril, 2010.


Dostoiévski, Fiódor. O jogador. São Paulo: Editora Martin Claret, 2004.

 

Filmes

 

"Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (2011)" Beto Brant, Renato Ciasca.


"A pele que habito (2011)" (La piel que habito) Pedro Almodóvar.


"Ultimo tango em Paris (1972)" (Last Tango in Paris) Bernardo Bertolucci.

 

NOTÍCIAS DOS CARTÉIS NA EBP

 

Delegação Rio Grande do Norte

Responsável pelos Cartéis: Ana Aparecida Rocha.

 

Resenha sobre o Encontro de Cartéis

Ana Aparecida Rocha

 

Realizamos sábado, dia 23 agosto de 2014, na sede da Delegação Rio Grande do Norte da Escola Brasileira de Psicanálise um Encontro de Cartéis. Contamos com a participação de 35 pessoas entre associados, alunos, membros e correspondentes. Tivemos como convidado Carlos Augusto Nicéas, da EBP-RJ. Houve a apresentação de quatro trabalhos, produtos de Cartéis. "O corpo, a arte, uma mulher", apresentado por Glaucineia, do Cartel em funcionamento: "As mulheres e seus objetos"; "A criança contemporânea, sua família e seu mal-estar", apresentado por Iara Fernandes, do Cartel já encerrado: "A criança na contemporaneidade"; "A angústia no seminário X", apresentado por Juliana Castro, do Cartel sobre o seminário X, ainda em andamento; e o trabalho "Fios e enlaces", apresentado por Juliana Ribeiro, do Cartel também em andamento sobre "Autismo".


Após a apresentação dos trabalhos, contamos com as observações que Nicéas aportou. As questões pertinentes ao lugar do analista na clínica com as crianças, ao trabalho em instituições, assim como na direção do tratamento com o autismo, foram ressaltadas. A aposta do analista em seu trabalho, dispondo-se não só a emprestar seu corpo, como também a inventar na direção da cura com o autista; a posição de perseverar frente ao olhar e fazer dos demais saberes acerca do sofrimento da criança; e, na clínica com a psicose, recolher o que a arte pode auxiliar, ser suplência para uma mulher frente ao que ocorre em suas parcerias amorosas, foram observações na leitura de Nicéas acerca dos trabalhos. Lembramos ainda o percurso apontado no trabalho sobre a angústia no seminário X, ficou como uma questão ainda a ser trabalhada neste Cartel, ou seja, a articulação deste percurso com o trabalho realizado na clínica. Ressaltamos que as pontuações de Nicéas foram intercaladas com a participação dos ouvintes e cartelizantes que aproveitaram este encontro colocando suas questões e compartilhando conosco o valor do trabalho do Cartel para a nossa formação.


Encerramos o encontro com a leitura e discussão de texto produzido por Nicéas intitulado "A solidão do pequeno grupo", publicado no Dobradiça nº2, Boletim dos Cartéis da EBP1. Nesta etapa vimos realçada a importância do Cartel, tanto para a formação do analista, quanto para àquele que está se aproximando da Escola de Lacan. Disse Nicéas: "a prática da elaboração de saber na escola de Lacan passa pelo Cartel e não existe escola de Lacan sem Cartel".


Ressaltados estes pontos, Nicéas finaliza nos deixando animados por termos conseguido, neste encontro, experimentar o vigor e importância que o Cartel detém para a nossa escolha para com a psicanálise de orientação lacaniana. A coordenadora de nossa Delegação, Ana Eloá Cerqueira, encerra agradecendo a presença de Nicéas, dos convidados e nos convocando a participarmos ainda mais com Cartéis em nossa Delegação, modalidade de trabalho viva na qual colocamos as questões que permeiam nossa formação.

 

1 Disponível no www.diretorianarede.com.br

 

 

Escrita cartelizante

 

Trabalhos apresentados na Jornada de Cartéis da Delegação RN, em 23 de agosto de 2014

 

A angústia no Seminário X

Juliana de Castro Teixeira
        

Inicio as reflexões sobre o Seminário 10, de Lacan, a partir de algumas questões: O que esse Seminário aponta além da angústia de castração concebida por Freud e pelo próprio Lacan em Seminários anteriores? De que modo Lacan trata a angústia nesse Seminário? São questões que me permitem apontar o modo como fui tocada e como me apropriei desse percurso.


Lacan ao abordar a angústia interroga: "A que distância colocar a angústia para lhes falar dela, sem pô-la no armário e sem tampouco deixá-la na imprecisão"?


Falar sobre a angústia nos convida a pensar em como conceituar algo que escapa ao simbólico? Segundo Miller (Introdução à leitura do Seminário da Angústia de Jaques Lacan), não se pode tratar a angústia como um conceito, mas como uma via de acesso para um resto que não é significantizado. Diz Miller: "A angústia é um instrumento de apreensão simbólica do real" (2005). Desse modo, com base no Seminário 10, a angústia é um afeto que sinaliza o que está fora da linguagem, sinaliza o real.


Freud, em seu texto Inibição, sintoma e angústia (1926), faz uma modificação na sua teoria da angústia: aqui ela deixa de ser considerada como descarga da libido, passando a ser um sinal ante a perda de um objeto, isto é, um sinal diante da ameaça da castração. Onde se instaura o perigo de uma perda, surge, a angústia de castração. Desse modo, a angústia é que produziria o recalque e não o inverso. No Seminário 10, a angústia não é sinal de uma falta, mas de algo que devemos "conceber num nível duplicado, por ser a falta de apoio dada pela falta", ou seja, a falta da falta. Há aí uma primeira distinção entre Freud e Lacan referente à angústia.
Freud, neste mesmo texto, diz: "A angústia pertencente às fobias a animais era um medo não transformado em castração" (Freud, 1926, p. 111). Sendo assim, desde Freud a angústia aparece como um resto de algo que não foi totalmente significantizado.


Lacan, partindo de Freud, vem apontar que "toda angústia sem objeto não é abolida pela fobia com um tato extraordinário: há um resto". A partir do momento em que há um resto, a angústia deixa de ser sem objeto. Esse resto, Lacan nomeou de objeto a. É sobre esse pano de fundo que Lacan formula no Seminário 10 que "A angústia não é sem objeto". O objeto representa o resto da operação da divisão do sujeito, ou seja, o resto da operação da marca do significante no sujeito.


Desse modo, a partir do objeto inapreensível da angústia em Freud, Lacan formula o objeto da angústia no Seminário 10.


Observa-se, então, que Lacan trás, no Seminário 10, uma torção sobre a teoria da angústia. Enquanto que no Seminário 4, A relação de objeto, Lacan aborda a angústia pela via significante, onde a angústia é pensada sem objeto, pois há um resto invisível, inapreensível. O real é ainda como algo articulável e nomeável e a falta como redutível ao significante. No Seminário 10, Lacan trás a angústia como aquela que não é sem objeto. O objeto como aquele resto que não pode ser totalmente significantizado; o real é inominável e a falta irredutível ao significante.


A partir dessas concepções, há além de uma virada teórica, uma modificação da própria clínica, na medida em que, com esse Seminário, não é mais a castração, nem a significação fálica, próprios da clínica estruturalista, que darão a direção do tratamento, mas a dimensão do real da angústia. Há uma ressignificação dos conceitos e da clínica.


Concluímos que o Seminário 10 trouxe importantes mudanças para a clínica lacaniana. Desse modo, quais os efeitos desse sSminário para a clínica?

 

Referências Bibliográficas:
FREUD, S. (1926) Inibições, sintomas e angústia. In: Obras psicológicas completas: Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro. Imago. 1996.
LACAN, J. (1962 -63) O seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2005.
MILLER, J-A. "Introdução à leitura do Seminário da Angústia de Jacques Lacan", in Opção Lacaniana -Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, nº 43, maio de 2005.

 

Fios e Enlaces1

Juliana Ribeiro

 

O encontro inaugural com a linguagem, mais especificamente com lalíngua, é sempre traumático. Fazer passar o real ao simbólico deixa um resto, o qual Lacan denominou objeto a.


Índice do furo, da simbolização não-toda, o objeto a é ao mesmo tempo positivado, pois reenvia o gozo que faz borda, sustentando o movimento do circuito pulsional e, também, está para além do princípio do prazer, uma vez que instaura o vazio produzido pela simbolização sobre o corpo.2


Lacan com seu neologismo troumatisme sublinha justamente esse encontro traumático com lalíngua. Um traumático que faz furo (trou).


Já no autismo, o objeto não funciona da mesma maneira. Ele não faz borda, está em excesso. É o que Maleval3 denomina de objeto entrop. Nessa mesma direção, Miller tece considerações acerca da falta do furo e, por fim, a proposta de Laurent sob a rubrica foraclusão do furo4.


Como o recurso da simbolização não pôde ser acessado para temperar o gozo do Outro, quais outros recursos a criança autista poderá formular e tornar suportável o imperativo desse gozo, vivido como invasor?
Na ausência da significação fálica, interrogamos quais outras formas da criança autista introduzir uma operação de redução de gozo e furar a língua maciça.


Mesmo que não haja a inscrição do falo, ou da falta simbólica, como possibilitar que se possa constituir uma modalidade sintomática que lhe permita aguentar os laços sociais sem que seja insuportável a presença do outro e de seus objetos?


Miller ao comentar o caso Robert atendido por Rosine Lefort nos indica como direção pensar os recursos fora do falo, para manejar com aquilo que é impossível de simbolizar, e que permanece sem conexão como circuito pulsional. Ele propõe o conceito de realização do simbólico, que implica na tentativa do sujeito para fazer entrar a função menos no real.


Quando esta extração pode ocorrer, ela se dá mediante um acontecimento de corpo, a ser considerado não como efeito de significação, mas de extração de gozo – o sujeito cede um pouco de carga de gozo que afeta seu corpo, sem que isso seja tão insuportável para ele. O corpo a corpo do terapeuta está implicado nisso.
Abordar a questão do autismo através da topologia possibilita melhor compreender a relação que o autista tem com seus objetos. Destaca-se, nesse caso, que "o real impõe uma topologia que não é a de um corpo circunscrito, que determina um dentro e um fora, em relação ao qual o objeto poderia ser êxtimo" (p.90), que se apresenta ao mesmo tempo íntimo e radicalmente exterior.


Mas, como instituir um limite para os sujeitos sem borda? É o que nos ensina a clínica do autismo: construir uma invenção singular de modo que seja possível constituir um circuito que faça função de borda, uma neoborda.


Maria chega para os atendimentos sempre com cordinhas e fios enrolados e amarrados de tal forma que parecem fazer parte de suas mãos. Se encontra algum fio pendurado ou chaveiros, agarra-os de uma maneira que parece impossível de separar. Esses fios inseparáveis começam fazer laço, quando juntas começamos escolher brinquedos que possam ser "amarrados". Cada vez mais surgem amarrações, não mais em seu corpo, tolerando separações curtas para que eu faça os nós, laços e encaixes nos brinquedos. Posiciono-me como parceira, acompanhando o fazer dela com os objetos. É preciso regular as trocas, protegendo-a, criando um espaço que não é do sujeito, mas também não é do Outro. No início resiste em deixar os brinquedos na sala, mas suporta quando desamarro e devolvo-lhe o fio que trouxe de casa, assegurando-lhe, que os brinquedos estarão na sala, esperando que ela volte e faça novos laços. Enquanto isso, ela poderá amarrá-lo em outros lugares.


Há um objeto em jogo no autismo, um objeto que adquire forma e que dá forma ao sujeito. É somente a partir deste objeto privilegiado, que teremos a possibilidade da tentativa de um possível enlace, que torne suportável para esta criança estar no mundo.

 

 

1 Cartel Autismo: Juliana Castro, Juliana Ribeiro Lima, Tatiana Schefer, Viviane Leite e Erick Leonardo (Mais-Um).

2 Barros, M do Rosário do Rego. (2012) "A questão do autismo" In Autismos(s) e atualidades: uma leitura lacaniana. Belo Horizonte, Scriptum.

3Maleval, Jean Claude (2007). "Sobretudo verbosos os autistas". Latusa: objetos soletrados no corpo.

4Laurent, Éric (2014). A batalha do autismo- da clínica à política. Rio de Janeiro: Zahar Editora.

 

 

 

AGENDA DOS CARTÉIS NA EBP

 

EBP-PERNAMBUCO

Diretora de Intercâmbio e Cartéis: Eliane Batista

Encontros de Cartéis sobre o amor
Local: sede da EBP-PE
Data: 2 de setembro
Horário: 19h30
Tema: O amor ao saber.
Apresentação: Teresa Batista

 

EBP-MINAS

Diretora de Intercâmbio e Cartéis: Lúcia Grossi

Noite "Acham-se Cartéis"
Local: sede da EBP-MG
Data: 8 de setembro
Horário: 19h

 

DELEGAÇÃO PARANÁ

Responsável pelos Cartéis: Cesar Skaf

Noite de Cartéis: Preparatória para o Evento-Cartéis do XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano – Belo Horizonte (21 a 23 de novembro de 2014)
Local: sede da Delegação PR
Data: 5 de setembro
Horário: 19h30 às 21:00hs
Tema: Acerca do Amor, seus desdobramentos e o amor de transferência.
Coordenação: César Skaf
Apresentação: Nancy Greca Carneiro, Márcia Stival Onyszkiewicz e Valéria Beatriz Araújo.
Convidamos a todos os que desejam inscrever um Cartel sob a chancela da Escola Brasileira de Psicanálise, bem como aos atuais cartelizantes e a quem possa interessar conhecer as bases e as singularidades de uma Escola que se inscreve sob os preceitos da Orientação Lacaniana e onde se estende o Campo Freudiano, que compareçam a esta Seção, cuja entrada é franca.

 


COMISSÃO EDITORIAL

Comissão Nacional dos Cartéis da EBP: Paola Salinas (Coordenadora), Inês Seabra, Cristiana Gallo, Cristiane Barreto e Maria Josefina Fuentes (Diretora Secretária da EBP)
Logomarca: Luiz Felipe Monteiro sobre obra de Escher

 

Dobradiça de Cartéis