Dobradiça de Cartéis

Junho de 2014

DOBRADIÇA DE CARTÉIS Nº 11

Boletim eletrônico dos cartéis da EBP

 

Dobradiça de Cartéis

 

 

Editorial

O amor, o cartel, o trabalho

Cristiana Gallo

 

Começo falando do amor e logo articulando-o ao Cartel, para anunciar que neste Dobradiça de Cartéis trazemos uma nova rubrica de grande valor para todos nós: o Evento-Cartéis no XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano que, nesta edição, é inaugurado com o texto Destinos do amor, de Maria Josefina Sota Fuentes, que se apresenta como um verdadeiro convite ao trabalho e, mais do que isto, como a apresentação de um trabalho já iniciado por nossas colegas Marcela Antelo e Elza Freitas em torno do tema do amor, ódio, amódio, percorrendo o teatro e o cinema e trazendo-nos indicações bibliográficas fundamentais.


As indicações de Marcela Antelo, seguidas pelos comentários de Elza Freitas, são provocações iniciais a um trabalho que pretende envolver a todos e a cada um, naquilo que pode ser transmitido do singular da relação dos cartelizantes com o tema que os anima, seja qual tenha sido o nome atribuído à questão que os levou ao Cartel!


Do Cartel à apresentação dos produtos de um trabalho elaborado neste pequeno grupo, também se inaugura neste Dobradiça de Cartéis outra rubrica: Intercâmbios na AMP é um novo espaço que nos trará contribuições dos Cartéis de outras Escolas da AMP. Nesta oportunidade trazemos o excelente texto de Ana Viganó, a responsável pelos Cartéis na NEL, que eu apresento como “preliminar” a todo nosso trabalho em Cartel, e no próximo número, o de Celeste Viñal, membro da EOL, que nos coloca em sintonia com a proposta do nosso Evento-Cartéis ao falar do amor.


Ana Viganó discute textos fundamentais a nossa prática em Cartel, apresentando suas elaborações produzidas em Cartel e indicando como é possível avançar a partir dele e transmitir este mesmo avanço. De fato, a perspectiva trazida por Ana Viganó nos remete a uma grande conversação acerca do trabalho em Cartel e, consequentemente, sobre a Escola. É o momento em que estamos!


Tenho a grata satisfação de acompanhar, semana a semana, a inscrição e conclusão de Cartéis no site da nossa Escola, bem como as procuraspor Cartel, que demonstram a existência de um fluxo, de uma pulsação, que vem se demonstrando em nossas publicações e no Dobradiça de Cartéis, quando aqui se apresentam os produtos colhidos nos trabalhos destes pequenos grupos, que tiveram a oportunidade de funcionar como Cartéis, com efeitos para a formação.


Neste número poderemos ter estas notícias a partir dos trabalhos de Marilsa Basso e Lucas Fraga Gomes que, para além de tais efeitos, também apresentam importantes contribuições teóricas.


Boa leitura a todos!

 


Intercâmbios na AMP

Cartel: fenda e dobradiça

Ana Viganó

 

Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu.1

Estou provocando para que me respondam. 2

 

O presente texto se insere na conversação que teve lugar no interior de um Cartel regional da NEL, cujo eixo convocatório é “O cartel e a política da psicanálise”3. O mesmo foi formado a partir do convite para constituir uma Comissão de Cartéis da NEL. Propusemos, assim, fazer concorrer no mesmo movimento as duas forças que, em tensão, articulam a vida da Escola: o institucional propriamente dito, o organizacional, inclusive burocrático, que é a modalidade de intercâmbio necessária à responsabilidade de uma comissão – enquanto gere uma tarefa delegada – e o que fundamenta, como princípio orientador, toda essa prática institucional e seus laços associativos, ou seja, o trabalho da Escola. Tensão que se renova uma e outra vez, já que não está garantida a permanência dessas forças de forma conjunta.

 

A Escola do Cartel

 

O Cartel foi definido por Lacan como o órgão de base de sua Escola. A introdução do Passe – posterior a invenção do dispositivo do Cartel – orienta a Escola enquanto organismo coerente com o discurso analítico. A Escola do Passe conserva livre “um espaço central para ‘o trabalho de Escola’”4 de tal forma que a instituição do Passe dentro da Escola não se contrapõe com o lugar de base do Cartel. Tanto que, até novo aviso, é um Cartel – o Cartel do Passe – onde se escuta aos passadores e se realizam as nomeações dos AE.


Aplicar o “plano Lacan” seria colocar fora da Escola ou em seu entorno tudo o que seja seminários, conferências e cursos, retirando da Escola esse aspecto do ensino para dedicar-se a seu trabalho através dos Cartéis. Trobas, ao pensar o Um da Escola em relação ao conceito de Mais-Um do Cartel, assinalou o “isomorfismo conceitual” entre Cartel e Escola.5 Mas a Escola Una, tal como foi definida tempo depois do “plano Lacan” – que nunca se realizou – é e não é a Escola de Lacan. Como Delgado aponta, “este é e não é se chama: Orientação lacaniana”6, nome e forma que temos assumido entre outras coisas para “dizer não à manutenção religiosa dos termos empregados por Lacan”. Não conservamos a herança como uma “liturgia", mas a submetemos a uma verificação seguindo uma leitura lógica7, que não é senão o modo que temos de apropriar-nos da mesma. Trata-se, então, de poder demonstrar a eficácia de uma prática através dos dispositivos que possuimos – Cartel e Passe –, o que contraria tanto uma fidelidade religiosa (perspectiva do ideal) –, como o lamento de tonalidade depressiva de nunca estar a altura (avesso do ideal).


Esta orientação leva-nos a interrogar as formas institucionais existentes para que ponham à prova sua qualidade de resposta aos princípios sobre os quais se fundam. Proporcional a esta tarefa é nossa responsabilidade fazer exisitir a Escola. Se finalmente a indicação de que a psicanálise é o tratamento que se espera de um psicanalista, ainda com sua ironia8 vigente, a Escola é para a psicanálise enquanto coloca a trabalhar a pergunta que não cessa de insistir: que é um psicanalista?


Lacan propõe o Cartel como o instrumento para fazer existir sua Escola: “Para a execução do trabalho, adotaremos o princípio de uma elaboração apoiada num pequeno grupo”9. É um dispositivo que conta com uma fórmula “x +1”, que clarifica a estrutura presente em todo grupo. Também sustenta sua eficácia na permutação usando a lógica depreendida da psicologia das massas, mas atuando contra ela com um certo forçamento deduzido de uma lógica diferente, a lógica do não-todo. Como já destacou suficientemente Miller10, Lacan não fala da execução de um trabalho entre outros, mas do trabalho; tampouco diz que se tratará de uma elaboração sustentada por um pequeno grupo, mas em um pequeno grupo à condição de saber que não se trata de qualquer grupo. A proposta de Lacan não renega, então, nem as iniciativas pessoais, nem a dinâmica grupal, nem a existência de líderes. Contudo inventa um dispositivo que as coloca em funcionamento em uma dinâmica diferente, que permite:


- que as iniciativas sejam submetidas às condições de crítica e controle de outros – os pares ímpares – da Escola;
- que os efeitos de grupo, que são sempre efeitos da segregação, sejam os menores possíveis;
- que o Mais-Um tome a seu cargo a condição de liderança, enquanto “sua arte”11 está em não se esgotar encarnando tal liderança, mas em inserir o efeito de sujeito no Cartel.


O Mais-Um não é o sujeito do Cartel, mas faz da divisão subjetiva uma função que põe ao trabalho, fazendo-se ele mesmo o suporte da divisão subjetiva, advertido como deve estar da razão que divide (o objeto a, posto no lugar da causa). Este efeito subjetivo seria o do “bom provocador”, aquele que promove sempre a boa pergunta e que por esta intervenção permite precipitar o traço apropriado com o que cada sujeito se fará representar no trabalho.


E, se estamos de acordo com que seja uma função, a estrutura mesma leva em consideração que, enquanto exista Cartel, esta função pode circular. Não se trata somente de entender a analogia com o projeto Bourbaki em termos de contribuições teóricas e construções coletivas, mas também que a função Mais-Um é um operador que deve ser encarnada a cada vez e que qualquer um pode encarná-la. A função se encarna. Miller assinala que “quando duas ou três pessoas falam juntas, vão saber depois quem fez emergir a coisa: há aquele que a disse, há aquele que a fez dizer e aquele que se apercebeu que era importante.”12  A colocação em funcionamento desta função do Mais-Um é sinal do que gosto de chamar “estar cartelizados”. Mas, se o espírito Bourbaki é o que convém ao trabalho do Cartel, a diferença se estabelece no plano do produto: no Cartel, o produto é próprio a cada um.   


O Cartel fica definido por seu uso – o de produzir efeitos de discurso, em sua modalidade de laço social e em seu tratamento do gozo ali circunscrito, articulando a transferência ao trabalho da Escola –; tem uma estrutura determinada e certas regras, mas seu funcionamento não se garante antecipadamente, posto que não é automático que esta função do Mais-Um se coloque em andamento, nem que a oferta do “para todos” seja singularizada em certo laço, produzindo a causa que o promove.


As condições de produção do Cartel implicam uma colocação do mesmo que requer, ao menos, um duplo consentimento: um desejo de saber que não seja anônimo e  uma cessão de gozo a favor do laço social que ali se funda.

 

Para fora/ desde fora: deixar-se interrogar

A denominação “Cartel” provém da economia e designa um acordo formal ou informal entre empresas de um mesmo setor para reduzir ou eliminar a concorrência. Seu interesse é desenvolver certo controle sobre a produção e distribuição de tal maneira que o conjunto assim arranjado opere de forma monopolista, obtendo determinado poder no mercado. A invenção lacaniana do Cartel para o trabalho da Escola, com sua função do Mais-Um e seu rigor de permutação, opera em uma direção contrária ao monopólio de produção e distribuição à respeito do saber, o ensino e a transmissão na psicanálise.


A oferta de Cartel é para todos, isto é, para todos os que se sintam convocados pela psicanálise – sejam ou não praticantes –, uma vez que a Escola é assunto daqueles que se interessam pela psicanálise em ato.13 O Cartel é um lugar privilegiado para fazer avançar a psicanálise pela desuposição do saber psicanalítico adquirido a favor de sustentar sempre vivo um desejo de saber; mas é também lugar de acolhida de outros saberes que, não sendo propriamente psicanalíticos, são postos em um lugar de causa para este avanço, razão de uma interrogação responsável dentro de uma Escola que não se fecha em si mesma. Pode-se entender deste modo o assinalamento particular de Lacan quando nomeia a Escola como lugar de “refúgio, ou bases de operação contra o [ ...] mal estar na civilização”14. Indicação que nos impele a compreender o que se refugia – e como, tal como se coloca, que não se trata de nenhum esconderijo, muito pelo contrário –; assim como nos haver com o nosso mal-estar, com o da  civilização que nos toca, dos nossos sintomas sociais, como descreve Laurent: o culto da ciência e sua consequente ideologia de eliminação do sujeito, a demanda social de um funcionamento do mental, e um saber sobre: “é por causa da angústia que a ideologia da supressão do sujeito engendra”15.


Nossa prática se desenvolve num contexto em que a globalização dos processos produtivos coloca a quantificação, a norma e a avaliação como as referências obrigatórias, e onde a elucidação dos substratos neurobiológicos de certos processos cognitivos se traduz em uma terapêutica cuja principal referência é a medicalização da vida. Se isso funciona e é verificado como um problema inerente à civilização que adquire as formas de expressão de cada época, a formação dos analistas se verá tentada a sucumbir aos efeitos do novo Midas, quando tudo o que toca se torna avaliável? Que laço será possível para aqueles que constituiriam a série dos não-identificados, aqueles que foram capazes de circunscrever o que justamente não faz laço social com o Outro?

 

Para dentro/desde dentro: desejo de saber

Quando Lacan criou o dispositivo do Cartel em 1964, o fez para apostar em um tratamento da questão grupal – sindical, institucional – diferente do tratamento  freudiano que resultou na Internacional. Mas não se trata só de uma questão histórica, ainda que esta tenha toda sua importância. Trata-se de uma herança que está no coração mesmo da transmissão da psicanálise – e de sua prática –: os psicanalistas devem à sua associação a forçosa tarefa de compartilhar um saber que não é transmissível de sujeito a sujeito.


 [...] é esse saber que não é portátil, já que nenhum saber pode ser portado por um só. Daí sua associação com aqueles que só partilham com ele esse saber por não poder trocá-lo. Os psicanalistas são sábios de um saber que não podem cultivar.16              

 

Não há intersubjetividade possível deste saber; o que há é transferência17 e por isso torna-se clara a tensão entre transmissão e ensino: “o que se transmite não necessita de nenhuma maneira ser entendido”. 
Mas podemos situar que, se bem nem toda transmissão é um ensino, o ensino pode ser um modo possível de transmissão. Qual é a chave de tal articulação? Laurent18 falará de um verdadeiro ensino quando o aprender em questão é um a-prender que se dirige ao não-sabido, quando se realiza na borda da ignorância, de seu impossível ali em causa, de seu silêncio fundante.


É o que coloca Miller19 em outros termos, quando define o ponto de fuga como o que distingue as modalidades na formação. Trata-se de conteúdos epistêmicos, a transmissão é verificável mediante determinadas provas. Se a formação requer uma mutação “psíquica”, sua verificação é mais problemática. Quando Lacan coloca no centro da formação do analista sua própria análise, indica, assim, como nesse ponto “os saberes ensinados pela via exterior desfalecem.”20


Ainda que a análise estivesse considerada por Freud no que propôs como o tripé tradicional da formação do analista (experiência psicanalítica, controle da prática e instrução teórica), a novidade que introduz Lacan, e que Miller destaca, é que a formação do analista, em relação a esse ponto de fuga, implica uma produção.
A formação entendida “sem ponto de fuga” remete ao Outro institucional, o da avaliação, os protocolos, os títulos e a performance. A formação “com ponto de fuga” remete a um produto, o do analista, produzido através de sua própria análise e o que disso pode ensinar, retorno ao conjunto verificado, por exemplo, nos testemunhos dos AE. Da mesma maneira, o produto de cada cartelizante assim considerado – como um objeto produzido pelo outro, do qual nos ocupamos em uma dimensão que evoca um resto do amor de transferência, ressituado como transferência de trabalho – se vale do ponto de fuga que também diz respeito ao Cartel e nos permite dizer que, se houve Cartel “algo pode ser passado”21 e reenviado ao conjunto como ganho de saber. A Escola então deve implementar lugares propícios para o tratamento de tais produtos, assim como ocupar-se de revisar os impasses, os fracassos e os obstáculos que fazem que tal passagem não se produza.


            O Cartel é uma “máquina de guerra contra o didata e sua cambada”22, contra os saberes instituídos e sua dogmatização. Assim, esta invenção nascida de um conceito intimamente ligada ao monopólio e ao poder, opõe-se frontalmente ao monopólio do saber globalizado, tecno-científico e paratodista. Mas também – e fundamentalmente – põe em xeque a questão do saber dentro da Escola. Ninguém pode afirmar que sabe tudo sobre a psicanálise. Um analista, mesmo após fazer o Passe e ser nomeado AE, pode saber exaustivamente sobre os seus sintomas, seu próprio desejo e a causa do gozo que o anima, e ainda transmitir esse saber em um ensino, mas não sabe tudo sobre a psicanálise, nem sobre o sintoma, o desejo e o gozo de quem senta ao seu lado.


O Cartel se inscreve ali onde se enlaça uma e outra perspectiva de formação. Proposta grupal; descompletada pelo “mais-ou-menos-um”23. Lógica coletiva de investigação; invenção singular de cada um – produzida pela experiência do Cartel. Produto de cada um; exposto e devolvido para o conjunto.
Se em O aturdito Lacan assinalava a impossibilidade para os analistas de formar grupo, é justamente para situar esse ponto de real – impossível – com que os analistas têm de lidar, enquanto analistas! Mas a Escola não reúne os analistas em um coletivo – o conjunto de todos os analistas –, e a posição que se assume ali não é a do analista –com algumas exceções marcadas pelo lugar que ocupam os AE. O Cartel traz à tona a tensão entre o desejo do analista – que não é de saber – e o desejo de saber, que é a posição analisante propriamente dita.

 

Ainda assim, conversação.

Diz Lacan em RSI: "O que eu quero, é o quê? A identificação ao grupo. É certo que os seres humanos se identificam a um grupo. [ ...] Mas não digo com isso a que ponto do grupo têm que se identificar”. A citação refere-se à problemática que transcorre entre a identificação de massas, seus efeitos de grupo e o um a um pelo qual zela a psicanálise; a mesma que encontramos entre a elaboração coletiva, o anonimato Bourbaki e a particularidade da enunciação que cinge a ordem singular.


Há alguns anos, Miller propôs levar adiante um seminário de investigação sobre o “pós-analítico” no exercício de conversação:


A conversação seria a maneira de saber, que convém ao mais além do Édipo, e que convém também no tempo do Outro que não existe [...]. À psicanálise não lhe está permitida a demonstração silenciosa, de tal maneira que talvez a conversação é o que nós instalamos no lugar do Nome-do-Pai.24

 

A conversação vai contra as três consequências catastróficas que assinalou Laurent e que Miller retoma em seu Curso, as três apresentadas como formas desfavoráveis ??de identificação, esclarecendo a antinomia entre o psicanalista e a psicanálise25:

1 – Identificação ao sintoma em lugar de lê-lo26: saída cínica em que o sujeito pode concluir que não tem ninguém a quem se dirigir, que o que o Outro sabe não importa.
2 - Identificação à verdade enquanto satisfação do próprio saber: o sujeito supõe que não tem nada a aprender com ninguém. Uma forma de analisante eternizado sem analista.
3 – Identificação burocrática ao saber como um sistema formal: saída por uma associação de psicanalistas assentada em um formalismo sem valores que o orientem.


E vai contra também, é claro, a “maldição lacaniana” antes assinalada, sendo uma colocação em ato da dessuposição do saber do Um.


A conversação como ato responde pelo esforço de bem-dizer o que não pode ser senão mal-dito, equivocando. Seguindo o poeta, dizemos que a conversação nos permite tentar modos de fracassar melhor.
O outro que fundamenta a conversação encarna o fato de que sempre fica algo por dizer, o que resta por dizer, verificando que não há outro saber que o saber da busca de um sempre por dizer que não se esgota no dito.


A conversação e sua posição de “honesta ignorância”27 é também o exercício oportuno para o Cartel.

 

Borda, fenda e dobradiça

Estamos cartelizados toda vez que opera esta condição “x +1” que produz um trabalho que, tocando a ordem do singular, se dirige ao outro do conjunto trazendo um ganho de saber. A contingência fará funcionar como Cartéis experiências de trabalho que talvez não estavam previstas como tais, e poderão existir Cartéis formalmente inscritos nos catálogos que não conseguirão cumprir seu intuito. Mas o Cartel como dispositivo está ali oferecendo sua estrutura de dobradiça ao bom ignorante que se proponha alguma articulação com a psicanálise em ato. Dobradiça como estrutura mínima de duas ferragens e um eixo, que permite o giro de duas superfícies, demarcando topologicamente espaços e tempos. Assim é como entendo a fórmula com a que Miller desenvolve que o Cartel transcorre entre o discurso analítico e o discurso histérico.28


Também assim posso pensar o Cartel como resposta da Escola à civilização e seu mal-estar: refúgio que é resistência, que permite articular, abrir mas também fechar, colocando um dique na reprodução desse mal-estar. Dobradiça entre o dentro e o fora da Escola – a psicanálise em extensão – mas também o dentro e o fora no interior mesmo da comunidade analítica e de cada um, abrindo espaço ao díspar, à heterogeneidade daquilo que faz o outro – e ao outro que há em mim – incomparável29. O Cartel se localiza sobre esse impossível grupal que ainda sim pode fazer laço social.

 

Dobradiça entre o já-sabido e o não-sabido, e, mais ainda, entre o já-dito e o que sempre resta por dizer.

Estrutura que só tem sentido colocada sobre uma fenda30 ali onde alguém se encontra – tropeça – com uma borda que intimida, e que permite enodar-se topologicamente em um tempo de compreender com outros, para produzir um tempo de conclusão de cada um. Conclusão que, uma vez produzida, volte ao campo do jogo – o nosso, o Campo Freudiano – e nos deixe disponíveis para voltar a jogar no tropeço seguinte que sempre nos aguarda na beirada da esquina.

 

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1. GOETHE, Fausto, Cena 1. Citado duas vezes por Freud em “Totem e Tabu” e em “Esboço de Psicanálise”.
FREUD, S. (1913 [1912-1913]) “Totem e Tabu”. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. 13. Rio de Janeiro: Imago. 1976, p. 188.
FREUD, S. (1940 [1938]) “Esboço de Psicanálise”. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. 23.  Rio de Janeiro: Imago. 1980, p. 237.
2. MILLER, J.-A. “O cartel no mundo”. In Manual de Cartéis. Belo Horizonte: Scriptum, 2010, p. 28.
3. Compartilho o Cartel com Mayra de Hanze (Mais-Um), Elida Ganoza, Beatriz García Moreno y Piedad Spurrier.
4. MILLER, J.-A. “A Escola do avesso”. In Manual de Cartéis. Belo Horizonte: Scriptum, 2010, p. 34.
5. TROBAS, Guy. “La perspectiva de la Escuela Una”. In El caldero de la Escuela, nº 67. Buenos Aires: EOL, 1999.
6. DELGADO, O. “Qué forma el cartel?”. In El caldero de la Escuela, nº 85. Buenos Aires: EOL, 2001.
7. “A Orientação lacaniana supõe reconstruir as problemáticas que respondem às elaborações de Lacan e às razões de suas variações”. GOROSTIZA, L. “La invención colectiva”. In Más Uno, nº7. Buenos Aires, 2001.
8. “Pois, se pudemos definir ironicamente a psicanálise como o tratamento que se espera de um psicanalista, é justamente a primeira, no entanto, que decide sobre a qualidade do segundo”. LACAN, J. “Situação da psicanálise em 1956”. In Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 462. A definição coloca no centro da cena a questão do que é então um analista, um por um.
9. LACAN, J. “Ato de fundação”. In Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p.235
10. MILLER, J.-A. op.cit.
11. MILLER, J.-A. “Cinco variações sobre o tema da elaboração provocada”. In Manual de Cartéis. Belo Horizonte: Scriptum, 2010.
12. MILLER, J.-A. Ibidem, p. 24 
13. LACAN, J. op. cit.
14. LACAN, J. Ibidem. p. 244.
15. LAURENT, E. « Reflexões sobre a forma atual do impossível de ensinar”. In Opção Lacaniana, n. 29. São Paulo; Eólia, dez. 2000, p. 5.
16. LACAN, J. “Da psicanálise em suas relações com a realidade”. In Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p.358 
17. “No começo da psicanálise está a transferência. […] Fico admirado de que ninguém jamais tenha pensado em me objetar […] que a transferência por si só cria uma objeção à intersubjetividade.” LACAN, J. “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”. In Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 252.
18. LAURENT, E. Ibidem, p.6.
19. MILLER, J.-A. “Para introduzir o efeito-de-formação”. Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 37, março 2002.
20. MILLER, J.-A. Ibidem, p. 12.
21. Na dificuldade de avaliar a formação como ponto de fuga localiza-se o Passe. Considero aqui certa analogia entre o Passe e o que “pode ser passado” no dispositivo do Cartel.
22.MILLER, J.-A. “O cartel no mundo”. In Manual de Cartéis. Belo Horizonte: Scriptum, 2010, p. 30.
23. Assim é como Miller escreve a função, ao manipular as estruturas discursivas seguindo uma lógica precisa para situar o Cartel entre o discurso analítico e o discurso histérico. Ver: MILLER, J-A. “Cinco variações sobre o tema da elaboração provocada”. In Manual de Cartéis. Belo Horizonte: Scriptum, 2010.
24. MILLER, J.-A. “Seminario de investigación Introducción al post-analítico” In El peso de los ideales. Buenos Aires: EOL-Paidós, 1999. p. 22.
25. Miller assinala como o praticante confirmado pode “apagar em cinismo sua busca de saber”. Assim recorda que não é simples polêmica antinomia que Lacan coloca entre a psicanálise e o psicanalista. É necessário “ver os aparatos suplementares dos quais a que dispor para que o analista não apague a psicanálise como disciplina” Miller, J.-A. Ibidem, p. 40.
26. Cf. MILLER, J.-A. “Ler um sintoma”. Versão on line: http://www.nel-amp.org
27. “A honestidade é aceitar voltar sobre o já deduzido, o produzido, para olhá-lo de outra maneira” MILLER, J.-A. Op. cit., p. 38. 
28. MIILER, J.-A. “Cinco variações sobre o tema da elaboração provocada”. In Manual de Cartéis. Belo Horizonte: Scriptum, 2010.
29. O conceito de extimidade, retomado por Miller em seu curso homônimo, esclarece e enriquece retroativamente esta questão.
30. A fenda mesma pode ser dobradiça, como as fendas que unem as capas de um livro. 

 

Tradução: Cristiana Gallo
Revisão: Paola Salinas

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*Texto publicado em a-ritmo propio. Boletín de carteles de la NEL, n.5.

 

 

 

Evento-Cartéis no XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano

Dias 21, 22 e 23 de novembro de 2014 em Belo Horizonte

 

Os destinos do amor

Maria Josefina Sota Fuentes

 

O tema de trabalho que a Diretoria de Cartéis da EBP escolheu para 2014, aos 50 anos do Ato de fundação de Lacan, retoma os fundamentos da Escola e do próprio dispositivo do Cartel. Dessa maneira, será também a ocasião, tal como dirá posteriormente Lacan, de “articular o que ali está como pivô de tudo que se institui pela experiência analítica: o amor” .


Uma Escola de “trabalhadores decididos” já implica uma resposta à maneira como a Associação Internacional de Psicanálise concebeu o final de análise a partir da identificação ao analista e da liquidação da transferência, tese que Lacan rejeita propondo-nos a “transferência de trabalho”. Assim, com os restos fecundos das transformações do amor de transferência ao longo da análise, Lacan funda uma Escola a serviço, não dos analistas, mas da psicanálise, colocando em causa o desejo do analista, sem “lavar as mãos” em relação ao aspecto libidinal em jogo.


Lacan, contudo, não propõe nenhuma ideologia do amor como um ideal do final de análise, lembrando inclusive que “não existe seguro do amor, porque ele seria também seguro de ódio”. O amor, paradoxal desde a descoberta freudiana, motor e obstáculo ao tratamento, não deixou de revelar, ao longo da própria história da psicanálise, sua face mais obscura, ou melhor, a ambivalência no passeio às vezes infernal pela face única da banda de Moebius, onde o amódio pode ser explosivo e até mesmo violento.


Entretanto, se o aspecto ilusório do amor, engodo ancorado no imaginário, foi bastante elucidado por Lacan ao longo do seu ensino, notadamente com o Seminário 20, o amor adquire uma valorização inédita até então na sua função de estabelecer o laço ao Outro, de ligar os S1s que no real são peças soltas. Sem amor, dirá finalmente Lacan, não há o inconsciente como suposição de saber, quando antes o Sujeito Suposto Saber era o pivô da experiência . É por isso que uma análise exige do analisante o amar seu inconsciente, para fazê-lo existir como tal. E ao final da análise, para onde vai o amor? Uma análise modifica o amor, esse novo amor, o amuro? Modifica a erotomania feminina, tão problemática para as próprias mulheres e às vezes de difícil manejo na transferência, como alertou Freud, sobre o amor de transferência, a propósito das “mulheres de paixões violentas”? Algo de novo em relação ao amor no homem ao final de uma análise?


Assim, com este tema em seus vários desdobramentos que procuraremos explorar aqui e no Boletim do XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano (http://www.encontrocampofreudiano.org.br/p/destinos-do-amor.html), convidamos a todos os cartelizantes a buscar uma articulação entre a questão singular de cada um e o tema que este ano nos convoca, colocando a céu aberto em Belo Horizonte seus trabalhos no Evento-Cartéis, que ocorrerá, como não poderia deixar de ser, dentro do XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano.

 

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DO AMÓDIO

Marcela Antelo

 

No teatro


Lebovits-Quenehen, Anaëlle. Da coragem de interrogar o valor, em Lacan quotidiano N° 356, 5/11/2013

 

O ódio feroz que Cornélie devotou ao invencível, evidentemente levou adiante o amor que ela devotava na véspera ainda por Pompeu. Amor de um e ódio de outro são feitos da mesma matéria, abrigam a mesma concha de recusa do real. Em relação à dor primorosa, isto é, sem limites que invade Cornélie na morte de Pompeu, na verdade a gente adivinha que ele dava a seu ser uma substância delineando os contornos. Pompeu não está mais, e essa substância se aloja senão no ódio extremamente desmesurado, na dor que ela trata.


Foi preciso decididamente a esta peça uma atuação luminosa para tocar o dedo nisto: o ódio e o amor (aquele que faz menos caso do real, até serve ativamente para esquecê-lo) são da mesma natureza. Todos os dois levam ao sacrifício e a devastação. Não é isso precisamente o que desenvolve Lacan quando faz a afirmação aparentemente paradoxal: “A abordagem do ser, não é aí que reside o extremo do amor, o verdadeiro amor? E o verdadeiro amor – seguramente não é a experiência analítica que fez essa descoberta, cuja modulação eterna dos temas sobre o amor carrega suficientemente o reflexo – o verdadeiro amor desemboca sobre o ódio.

 

No cinema

 

Only lovers left alive: http://cinentransit.com/only-lovers-left-alive/

 

Two lovers: http://cinentransit.com/two-lovers-1/

 

Eros e tânatos, mitologia e psicanálise no cinema:http://cinentransit.com/efectos-de-amor-y-muerte-en-el-cine-de-civeyrac/

 

Breve encontro, um par perfeito, antes do amanhecer: http://cinentransit.com/breve-encuentro-una-pareja-perfecta-antes-del-amanecer/

 

Os amantes de pont-neuf: http://cinentransit.com/los-amantes-del-pont-neuf/

 

COMENTÁRIOS

Elza Freitas

 

Recebemos de Marcela Antelo uma lista de filmes e o nome de uma peça de teatro, onde tentei recortar os temas que nos habitam até o final do ano. No fundo, sempre estiveram conosco e ainda estarão sempre. Tentei enfatizar os filmes que especificamente retratariam o amódio. Não inclui entre eles Dois amantes, direção de James Grey, pois nesse filme vejo que é mais trabalhada frente a nossos olhos a impossibilidade do encontro sexual, ou, dito de outro modo, do encontro amoroso. Entre duas, o coração do rapaz oscila e a morte decide por ele. Ou a vida.


Já no filme Os amantes de Pont-neuf, magistralmente interpretado, dirigido por Leos Carax, vemos a gênese de uma relação que, face à essa impossibilidade, é pressionada pela “mortalidade” e pela precariedade dos personagens, no caso dele, a drogadição e, no dela, que é pintora, uma doença progressiva que irá cegá-la impedindo-a finalmente de pintar. Os dois vão na direção de uma dependência radical, onde as trocas cedem lugar a um forçamento da não existência de qualquer distância ou realidade exterior ao casal. Vemos aí o avanço da pulsão de morte com seu poder letal e seus miasmas visando à manutenção do gozo a qualquer custo. Essas vicissitudes do real, as condições que acometem cada um dos dois, recobrem com sentido a hiância que marca a distância entre dois sujeitos, os enganando e os aferrando ao corpo e à presença mortificada de um e de outro. O ódio revela sua infiltração na face de monstro da dependência mútua.
Mas de modo algum deixaria de acrescentar aqui um outro filme, O império dos sentidos. Esse filme japonês, de 1976 dirigido por Nagisa Oshima, é um marco definitivo para qualquer abordagem que façamos para o tema amódio. O casal, que é o centro da história do começo ao fim, percorre toda a distância que vai da vida à morte, em passos deliberados, conscientes e definidos claramente até o desenlace em que os dois, em consenso, consumam para a eternidade o ato sexual, num recurso erótico de enforcamento para obter dele uma ereção absoluta e na ação dela pela extirpação total do aparelho genital externo do homem, que ficará “em ato” em seu corpo para a eternidade. Essa folie-a-deux é levada muito além da tentativa de um diagnóstico, como resultado da arte do diretor que nos leva a ver que essa consunção amódio é possível, não só possível como passível de ser escolhida. Isso a meu ver é mais do que devastação. É o resultado da busca existencial radical de uma solução para o enigma da não proporção entre os sexos. Em termos imagéticos, considero insuperado até hoje o tratamento que Oshima deu ao tema do trágico inexorável que nos funda. O cinema que pode mostrar tudo, aqui, ao mesmo tempo agora nos coloca frente à topologia da morte, do sexo, e da busca de um definitivo para além de todo gozo ou, dito de outro modo, de um gozo absoluto. 

 

Escrita cartelizante

Trabalho apresentado na Noite de Cartéis da EBP-SP

 

 

O Cartel e o real

Marilsa Basso

 

"O Cartel e o real" é o título do artigo de Catherine Lacaze-Paule, publicado no Papers 61 e apresentado na Noite de Cartéis da ECF em Paris, onde a autora trabalha o real como impossível, que no Cartel se apresenta como o impossível do grupo.

 

Refere que Lacan, para inventar o Cartel2, se inspira num modelo universitário que propõe um trabalho em pequenos grupos sem a presença de um professor, e na teoria dos pequenos grupos de Bion3 que propõe um trabalho de forma igualitária, sem hierarquia, mas com uma produção.

 

Lacan confirma haver dois órgãos que constituem a Escola: o Cartel e o Passe. Isso abre uma topologia da Escola formada por um conjunto fechado em seus membros e, ao mesmo tempo, aberta à produção de saber que a constitui. Lacaze-Paule retoma o escrito de Lacan  “A psiquiatria inglesa e a guerra”4, onde destaca os princípios retidos por ele em sua experiência numa temporada na Inglaterra, que são essenciais à constituição dos Cartéis. São pontos que Laurent também retoma em seu texto Le discours psychanalytique et le groupe5.

Há um primeiro ponto irônico onde Lacan diz: “não é de uma enorme indocilidade dos indivíduos que virão os perigos do futuro humano”6. Lacan considera que há uma luta a ser empreendida contra a pulsão de morte, que se desdobra sob o nome do mal-estar na civilização, notadamente sob a forma de paixão da ignorância, explica Lacaze-Paule.

 

Ela nos diz: “A criação de um pequeno grupo de trabalho em torno de uma tarefa a realizar, e não um ideal, sai do isolamento – não da solidão – e permite a cada um, à sua medida, ali colocar algo de seu, segundo sua relação singular e não coletiva com o ideal"7.

 

No Cartel há uma função de líder, mas este a irá operar como redução e descarga, o que Lacan chama de uma função desbastada do líder. Segundo ele, não se trata de eliminar completamente a identificação nem todo efeito imaginário próprios ao grupo, nem todos os ideais. Trata-se de regulá-los no propósito do “um por um” de cada um.


Lacaze-Paule coloca que, numa primeira vertente, pode-se pensar que os efeitos imaginários do grupo serão tratados pelo simbólico e que a ação do Mais-Um irá regular esses efeitos, ou ainda, que essa estrutura simbólica se oporia ao real enquanto o impossível de suportar do grupo. Entretanto, não é só isso, “o Cartel, sua estrutura implica também um modo de discurso”8. Há o discurso analítico que faz laço social, ou seja, não são os sujeitos em si, mas o discurso que faz laço e, no coração dos quatro discursos, se escreve uma impotência e um impossível.


Diz Lacan no Seminário 17, no capítulo “A impotência da verdade”: “o impossível é o real”9. Sendo o discurso analítico o que trata o real.


Assim, ele continua, “Se é a partir do impossível de dizer que o Mais-Um orienta, [...] ele separa a impotência de dizer que ressoa com a fantasia em jogo, do impossível de dizer como real”10. De qualquer maneira há uma relação com o saber marcada com um furo. “No Cartel se verifica que não há aprendizagem do saber, pois é com seu objeto, objeto causa de desejo, que se aprende o que nos concerne”11.


Valéria Ferranti, em sua apresentação na Noite de Cartéis da Seção São Paulo (2013) situa algo fundamental no ensino de Lacan que eu gostaria de retomar, quando ela também faz referência ao Seminário 17:


Se há algo que a psicanálise deveria forçar-nos a sustentar tenazmente é que o desejo de saber não tem qualquer relação com o saber [...] Distinção radical que tem suas consequências últimas do ponto de vista da pedagogia – o que conduz ao saber não é o desejo de saber. O que conduz ao saber é – se me permitirem justificar em um prazo mais ou menos longo – o discurso da histérica12.

 

A isto eu acrescentaria:

 

A interpretação – aqueles que a usam se dão conta – é com frequência estabelecida por um enigma. Enigma colhido, tanto quanto possível, na trama do discurso psicanalisante, e que você, o intérprete, de modo algum pode completar por si mesmo, nem considerar, sem mentir, como confissão. Citação, por outro lado, às vezes tirada do mesmo texto, tal como foi enunciado.13

 

Assim, podemos pensar nesse funcionamento pela lógica da circulação de discursos. Onde estabelecer um enigma (que pode ou não ter efeito de interpretação), devolver uma questão, pontuar ou provocar a formulação da questão de cada um, apontar algo que possa tocar no real enquanto impossível do grupo, são efeitos possíveis de um Cartel.


Portanto, no Cartel, trata-se de obter um saber marcado com o selo do inconsciente de cada um. Ou seja, a maneira como cada um se apropria em razão e em lógica do saber, a partir do seu eu não quero saber nada disso, de seu encontro com um impossível singular e em função do que ele faz disso [...] A estrutura do Cartel responde e inscreve o que centra a psicanálise, a questão do real como impossível. O transitório, o aleatório, a permutação e o líder desbastado [...] são princípios que põe em jogo o impossível e a crise [...] Assim, a operação analítica está inscrita na própria estrutura do Cartel.14

 

 Laura Petrosino, no Congresso da AMP 2014, fala que a supervisão vai além da construção do caso e sua formalização, pois aponta para uma descontinuidade. Flory Kruger, na mesma plenária, pontua a posição do analista na “falta-a-ser”. Entre descontinuidade e a falta-a-ser podemos pensar, pelo viés da formação, no Cartel; na função de esvaziamento e de descompletude do grupo, assim como a convocação a cada um quando o grupo tende a se desfazer por conta do impossível nele implícito.


Como disse Vicente Palomera no mesmo Congresso, retomando o Seminário Encore, o real só pode se inscrever em um impasse. Nisso o discurso analítico pode operar, diante dos impasses, convocar o um (mesmo quando apresentado no grupo), na causa de cada um.

 

Fragmento de uma experiência de Cartel


Tratava-se de uma primeira experiência de Cartel (1997/98) onde havia uma ideia do funcionamento desse trabalho, mas não se sabia de forma alguma as entranhas e os efeitos possíveis num Cartel, este era pensado somente como um pequeno grupo de estudo, ou seja, havia uma posição um tanto desavisada que favoreceu um efeito interessante.


O Mais-Um deste Cartel foi escolhido pelo viés de um mestre acessível, simpático e que poderia responder às nossas questões. Os cartelizantes se escolheram por afinidade e comodidade de local e horário. O Mais-Um ouviu brevemente nossa demanda e logo aceitou o trabalho.


O tema era “as psicoses” e logo nos deparamos com o esquema L. Perguntamos então ao mestre suposto o que era esse tal esquema. Ele nos respondeu na sua posição mesmo de simpatia: “boa questão, vocês podem me responder isso no próximo encontro”. Orientou o que ler.


Reunimo-nos, discutimos, lemos, nos debatemos e nos desorganizamos enquanto “grupo”. Num dado momento parecia que cada um esperava socorro do outro e ninguém salvava. Não soubemos responder à nossa questão. No encontro seguinte, com intervalo mais espaçado que o habitual, ele responde um pouco a questão, mas de forma muito breve, resumida e com mais enigmas ainda; isso depois de ouvir nossa confusão (L?, Z?, R?), nossa descompletude (quem?) e nossas suposições. O Mais-Um opera então sugerindo que cada um pudesse elaborar um pouco de sua questão no Cartel. Inicia-se um outro momento, de cada um no grupo e não mais do grupo.


Temos logo uma primeira resposta, um sim ao lugar de Mais-Um, mas não ao lugar do mestre como demandamos. O que pode ser localizado no momento de esvaziamento quando ele não responde, deixando um tom irônico e sem muitas explicações. Depois ele nos instiga a estudar. Em seguida o grupo se depara com conflitos, com impasses e com a ausência do UM, com um furo no ideal do grupo e na expectativa diante das identificações imaginárias do grupo. Após um tempo um tanto à deriva, há um certo acolhimento, ele orienta cada um em direção à seu trabalho individual.


Algo da ordem de uma circulação de discurso operou e, para mim, um efeito de deslocamento do grupo e de implicação. Talvez pela própria posição do Mais-Um (que no caso provocou um menos-um necessário para confrontar o grupo), já orientado pelo real, que aponta ali para “o real camuflado nas articulações imaginárias e simbólicas”, como ele mesmo, Rômulo Ferreira da Silva, disse na plenária de 15 de abril no Congresso da AMP 2014.

 

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1. Publicação do Comitê de Ação da Escola Una - IX Congresso da AMP- www.congresamp2014.com.
2. Em 1964, ao fundar a Escola Freudiana de Paris e, em 1980, quando a reitera na fundação da Escola da Causa Freudiana.
3. Com os quais Lacan se depara em uma temporada na Inglaterra, em 1945.
4. Lacan, J. “A psiquiatria inglesa e a guerra”. In Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

5. Laurent, É. “Le discours psychanalytique et le groupe”. In Quarto, n. 08.

6. Lacan, J. op. cit., p.125.
7. Lacaze- Paule, C. “O cartel e o real”. In Papers 6, www.congresamp2014.com.
8. Lacaze-Paule, C. Ibidem.
9. Lacan. J. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, p.157.
10. Lacaze-Paule, C. Ibidem.
11. Lacaze-Paule, C. Ibidem.
12. Lacan. J. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, p.21.
13. Lacan. J. Ibidem, p.35.
14. Lacaze-Paule, C. op. cit.

 

Trabalho apresentado na Noite de Cartéis da Delegação ES
Política lacaniana

Lucas Fraga Gomes

 

Freud não cedeu em relação a seu desejo: sua descoberta do inconsciente e consequentemente a invenção da psicanálise foi, como Lacan faz questão de pontuar, um acontecimento: algo do recalque foi levantado tendo efeitos na cultura.


Não menos subversivo, Lacan em seu retorno a Freud estava de certa forma no processo de reinventar a invenção. Suas contribuições para a psicanálise extravasaram o próprio campo, trazendo valiosas questões para diversos saberes, tais como a filosofia, a linguística, e, por que não, a política.


“Em suma, meu estudante da política concluirá que, no campo político, Lacan é contra tudo que é a favor [...]” (Miller, 2004, p.11). Lacan afirmava que a política funcionava por identificação, ou seja, ela captura os sujeitos pela via da manipulação dos significantes-mestres. Daí a psicanálise ser o avesso da política (Miller, 2004).
Na tentativa de definir “política”, Miller cita Marcel Gauchet: “[...] ela é o lugar de uma fratura da verdade [...]”. (Miller, 2011a, p.2). Como exemplo prático temos os governos totalitários que tentam suprimir de todas as maneiras esta divisão.


No Seminário De um Outro ao outro, toda crítica que Lacan tece a posições políticas relaciona-se com a verdade. Não custa lembrar que este Seminário tem início em novembro de 68, ou seja, a França ainda estava vivendo um momento de grande ebulição. Momento que Lacan utiliza a seu favor ao questionar o Outro, demonstrando que ele é inconsistente e não mais garantia da verdade. Fazendo uso de Pascal, trata-se no máximo de uma aposta: apostar neste Outro que não se sabe se é nem o que é. Afirma Miller: “[...] Lacan pensou a psicanálise na época disciplinar, mas também participou da psicanálise imperial e é a isso que tentamos conferir a atualidade em ‘o Outro não existe’ [...]” (Miller, 2002, p.10). Assim, temos uma certa “relação” entre as questões do tempo e as próprias mudanças que Lacan provocava em seu ensino.


Já na segunda lição do Seminário, Lacan cita um encontro que teve com Lucien Goldmann (teórico marxista):

 

[...] Ele me disse que vinha investigando a teoria marxista e estava inundado pela felicidade que tudo aquilo exalava. Mas não lhe havia ocorrido à ideia de que a felicidade pode provir da greve da verdade. Considerando o peso com que a verdade recai sobre nós a cada instante de nossa existência, que felicidade, sem dúvida, já não ter com ela senão uma relação coletiva [...] (LACAN, 2008, p. 42).

 

A verdade faz greve para cada sujeito, passando desta forma ao coletivo, criando assim uma sensação de entusiasmo e libertação. Para Lacan, a “verdade coletiva” pode até ter alguns efeitos, mas para ele o que importa é a função da verdade na existência do sujeito. Ainda, esta passagem já indica que as pontuações que Lacan apresenta sobre política/verdade tem estreita relação com este Outro que é inconsistente, ou seja, já não é mais fiador da verdade. Assim: “[...] O discurso que se sustenta é aquele que pode manter-se por muito tempo sem que vocês tenham razão para pedir que explique sua verdade.” (LACAN, 2008, p.42). Será este o discurso do analista?


Continuando sua releitura da máxima apresentada no texto “A coisa freudiana”, afirma Lacan:


[...] Eu fiz dizer à verdade: Eu, a verdade, falo. Mas não a fiz dizer, por exemplo: Eu a verdade, falo para me dizer como verdade, nem para lhes dizer a verdade. O fato de ele falar não significa que ela diga a verdade. É a verdade, e ela fala. Quanto ao que ela diz, vocês é que têm de se haver com isso [...] (LACAN, 2008, p.168).

 

 Lacan retoma aqui dois princípios já apresentados no início de seu curso. Primeiro: nenhum discurso pode dizer a verdade. Segundo: a essência da psicanálise é um discurso sem fala. As consequências políticas desta posição indicam um alerta para aqueles que são seduzidos por discursos que pretendem dizer e ser a verdade. Estes, ao assumirem esta posição, instauram um Outro consistente, metalinguístico, em que não há lugar para o furo:


[...] Se há algum tempo, e eu lhes direi por que, não estivéssemos tão convencidos de que o cristianismo não é a verdade, poderíamos afinal lembrar que, durante um certo tempo, que não foi insignificante, ele foi à verdade, e forneceu a prova de que em torno de toda verdade que tem a pretensão de falar como tal prospera um clero que é obrigatoriamente mentiroso. Assim, eu realmente me pergunto por que as pessoas caem das nuvens a propósito do funcionamento dos governos socialistas. (LACAN, 2008, p.170).

 

Tal como no Seminário 7, Lacan remonta a Jeremy Bentham e sua teoria das ficções para demonstrar a relação da verdade com a mentira. Naquele curso, ele já havia postulado que a verdade tem a estrutura de ficção. Em 68, criticando o progressismo, ele afirma: “Chegarei eu a dizer que a pérola da mentira é a secreção da verdade? [...].” (LACAN, 2008, p.170). Posição ímpar da psicanálise que postula a verdade como aquilo que fala não o mentiroso, visto que não se trata de verificação, e sim a verdade que fala por meio do simbólico. Temos então a verdade como efeito de discurso, passível até de manipulação.


Tal como Freud, Lacan não cedeu ao seu desejo: não consentia com a posição de mestre que muitos o demandavam. Para ele, trata-se de fazer vacilar os semblantes. Se no Seminário “A lógica da fantasia” Lacan afirmou que o inconsciente é a política, foi tendo como base a tese de que o inconsciente é o discurso do Outro. Posteriormente, em 1968, com a demonstração da inconsistência e da impossibilidade de um discurso dizer a verdade, a “política” da psicanálise passa a se pautar na torção saber – verdade. Parece-me que o ápice da formulação política de Lacan acontecerá anos mais tarde em seu Seminário Sinthoma. Pois, quando questionado o que ele achava dos movimentos da China, ele afirma: “Eu aguardo, mas não espero nada”. Aqui, Lacan vai ao limite de vacilar os semblantes, inclusive o psicanalítico.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LACAN, J. O Seminário livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.
MILLER, J.-A. “Lacan e a política”. In Opção lacaniana, nº40. São Paulo: Eólia, 2004.
MILLER, J.-A. “Intuições milanesas I”. Disponível em:
http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_5/Intui%C3%A7%C3%B5es_milanesas.pdf
MILLER, J.-A. “Intuições milanesas II”. Disponível em:
http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_6/Intuicoes_Milanesas_II.pdf

 

AGENDA DOS CARTÉIS NA EBP

 

EBP-RIO DE JANEIRO

Diretora de Intercâmbio e Cartéis: Elza Freitas

Procura-se Cartéis na EBP-RJ
Local: sede da EBP-RJ
Data e hora: 31 de junho às 10h30

 

EBP-SANTA CATARINA

Diretora de Intercâmbio e Cartéis: Cinthia Busato

Noite de Cartéis da Seção EBP-SC
Local: sede da EBP-SC
Data e hora: 26 de junho às 20h30
Apresentação do trabalho que vem sendo realizado no Cartel “Acontecimento de corpo”, que tem Patrícia Boieng como Mais-Um. 

 

DELEGAÇÃO ESPÍRITO SANTO

Responsável pelos Cartéis: Tânia Martins

Noite de Cartéis da Delegação ES
Local: sede da Delegação ES
Data e hora: 25 de junho às 20h30
Apresentação: Hitala Campos Gomes com o tema “O Um e o Outro”, e Tânia Martins com o tema “O objeto a no Seminário XVI de Lacan”, ambos membros do Cartel “Leitura do Seminário de um Outro ao outro de Jacques Lacan”

 

 


COMISSÃO EDITORIAL

Comissão Nacional dos Cartéis da EBP: Paola Salinas (Coordenadora), Inês Seabra, Cristiana Gallo, Cristiane Barreto e Maria Josefina Fuentes (Diretora Secretária da EBP)
Logomarca: Luiz Felipe Monteiro sobre obra de Escher

 

Dobradiça de Cartéis