Dobradiça de Cartéis

Agosto de 2013

DOBRADIÇA DE CARTÉIS Nº 3

Boletim eletrônico dos cartéis da EBP

 

Cartéis: do que é prévio ao que se desdobra

Cristiane Barreto

 

Do significado corrente, retiramos que Dobradiça é um conjunto de duas peças unidas por um pino sobre o qual giram, o que lhes permite afastar-se ou aproximar-se, formando um ângulo mais ou menos aberto. Sinônimo de charneira, gonzo, bisagra. Dobradiça também se define como uma junção ou lugar de contato de duas partes dobráveis uma sobre a outra, numa obra ou armação. Dobra-se ou desdobra-se, em qualquer coisa.


Para pensar nos efeitos de formação que um cartel pode promover, também podemos vislumbrar uma dobradiça. Com a proposta que nos transmitiu Romildo do Rego Barros – em sua conferência proferida na XIV Jornada de Cartéis da EBP-MG, publicada neste número –, os efeitos de formação destinados a um cartel resultariam do “choque entre o trabalho coletivo e a produção individual”, a tal ponto de podermos constatar, em alguns casos, a estrutura de um ato, posto na irrupção de algo único, a partir do trabalho feito no espaço coletivo do pequeno grupo.


A conferência de Romildo está circunscrita no segundo texto que apresentaremos aqui. Trata-se de uma resenha dos trabalhos da XIV Jornada de Cartéis da EBP-MG feita por Bernadete Carvalho e Maria das Graças Sena. Resenha que estreita a conexão com este Editorial, complementando-o e, também, informando sobre o restante dos trabalhos da Jornada, com as apresentações dos cartelizantes. Nesse viés, selecionamos um dos trabalhos da Jornada para compor esta Dobradiça, no “Escritas analisantes”. Trata-se de um texto transcrito do depoimento de Andreia Barbosa, cujo título, Efeitos de sujeito advindos do cartel, cumpre a sua função.


Numa abertura mais acentuada, o Dobradiça se desdobra, ainda, para revelar as notícias, espaços destinados aos cartéis na EBP, finalizando este terceiro número, num esforço para transmitir o movimento de trabalho que persistir em agalmatizar o cartel, temos o “Acontece em Cartéis”.


 A invenção lacaniana do Cartel comportaria, desde sempre, a ideia da produção de um ideal, visto que não há coletivo sem um ideal e, ainda, no seu interior, “o rudimento de um processo de separação”. Em um cartel, a “dedicação coletiva” e um inquieto ponto íntimo de leitura, permitem percorrer uma elaboração (provocada!) do produto final, sempre individual.  Enlaçamento necessário à função de formação do Cartel, derivado e, ao mesmo tempo, pedra angular da Escola de Lacan, onde o empenho na construção do espaço coletivo não se faz sem o naco de carne de cada um.


Se uma escola mantém viva a pergunta “O que é um analista”, o faz demarcando sua ressonância nos pilares da formação permanente de cada um dos seus membros na própria análise, na supervisão, na vertente epistêmica e no cartel; afinal, numa análise, trata-se sempre, em última instância, de “circunscrever a solidão subjetiva”, para que, no final, outra dobra se enlace na sustentação do “Lugar da diferença em Psicanálise” e dedicação dessa radical decisão de fazer durar uma Escola.


Não deixe de visitar a página dos cartéis no site da EBP (http://ebp.org.br/carteis/apresentacao), onde você poderá se inscrever no “Procura-se um Cartel”, caso ainda não tenha encontrado colegas para trabalhar em conjunto; ou onde o mais-um de um cartel já constituído poderá declarar o seu, formalizando o laço entre esse pequeno grupo e o Outro da Escola.

 

Conferência de Romildo do Rêgo Barros

Jornada de Cartéis da EBP-MG

22 de junho de 2013

 

O lugar da diferença em psicanálise

 

Eu queria inicialmente agradecer o convite que me foi feito por Lúcia Grossi, pela apresentação generosa que ela acaba de fazer, e também pela responsabilidade gigantesca que ela me deu de trazer aqui uma tyché, que rompe com a tradição de se convidar quase sempre algum colega argentino. Lúcia chamou a esse hábito de automaton.


Posso contar a vocês o que foi a minha primeira ideia, logo após receber o convite. Pareceu-me interessante falar sobre os cartéis,  a estrutura, a distribuição, e um pouco da história desde que Lacan inventou esse dispositivo. Mas depois, confesso a vocês que mudei de ideia. Andei recolhendo o material que eu próprio tinha escrito há 10, 15 anos, e notei que eu não sabia muita coisa a mais do que eu já tinha escrito, e achei um pouco chato vir aqui repetir.


Resolvi então dar continuidade em Belo Horizonte ao que estamos tentando fazer no Núcleo de Direito e Psicanálise do Instituto de Clínica Psicanalítica do Rio de Janeiro, que eu coordeno.
O que, pessoalmente, estou querendo com este título – “O lugar da diferença em psicanálise” – ? Pretendo avançar em quê direção?


Estamos iniciando uma discussão sobre uma prática muito divulgada hoje em dia, e que, me parece, vai ter consequências importantes na cultura, que é o chamado “casamento gay”. A gente começará com uma abordagem mais teórica, doutrinária, depois estudará um pouco os meandros da legislação, também experiências clínicas, e o volume bastante grande de trabalhos sobre o casamento gay no Campo Freudiano. Propus produzir mais tarde um livro de autoria do Núcleo que abordasse a questão. É a primeira aproximação que faço do assunto, e me pareceu interessante defini-lo em amplas linhas, para um dia chegar ao assunto prático do casamento gay.


O primeiro título a que eu cheguei para esta palestra de hoje foi “A função da diferença em psicanálise”. Depois pensei que o termo “função” tem uma gravitação que faz com que imediatamente se pense no corpo. A ideia que Durkheim trouxe para os grupos sociais é que cada um de nós tem uma função e juntos compomos um corpo. Pareceu-me então melhor chamar de “lugar”, “lugar da diferença”, porque a diferença tem um lugar, eu diria um lugar cativo e fundador na psicanálise.


Também me pareceu que esta discussão sobre a diferença é muito apropriada para uma Jornada de Cartéis que, no final das contas, é uma estrutura que Lacan inventou levando em conta, justamente, a questão das diferenças. Foi uma tentativa feita por Lacan de associar o trabalho coletivo com a produção individual. Aliás, é a exigência de Lacan para o trabalho de Cartéis: faz-se uma reunião coletiva, há um plano coletivo, uma dedicação coletiva, com horários,  lugares, etc., mas o “produto final”, como Lacan o chamava, é individual. É neste entrechoque entre o coletivo e o individual que irrompem os efeitos de formação próprios de um cartel.
Então, espera-se de um cartel uma certa capacidade de engendrar algo de novo – a tal ponto que o trabalho individual, como produto a partir de um estudo coletivo, pode em alguns casos ter a estrutura de um ato. Também teria esta característica de ser a irrupção de alguma coisa única a partir do que não é único, como um grupo.


Em segundo lugar, o sujeito freudiano – vocês sabem que “sujeito” é um termo de Lacan, não de Freud, mas, depois de Lacan, a gente pode, retroativamente, referir-se ao “sujeito freudiano”. O sujeito freudiano pode ser entendido como uma espécie de variável que estaria situada em algum lugar na articulação entre duas diferenças, que são a diferença sexual e a diferença de gerações.


Uma primeira proposta seria, portanto, pensar o sujeito freudiano como aquilo que resulta – para usar o mesmo termo que usei para falar dos cartéis – de um entrechoque, desta vez entre a diferença das gerações e a diferença sexual. Uma maneira que me pareceu interessante de ilustrar essa ideia seria o traçado cartesiano. Na linha das abcissas, estaria a diferença sexual, e, na linha das ordenadas, a diferença das gerações, ou o contrário. De tal forma que a gente possa localizar infinitos pontos onde estaria o sujeito, ou, se vocês quiserem ser mais abstratos, uma posição subjetiva. No entrecruzamento entre a diferença sexual e a diferença de gerações, a gente pode situar, eu não diria infinitos, mas muitos pontos que, na lógica freudiana, chamaríamos de “sujeito”, ou “posição”, ou “localização subjetiva”, e, sobretudo, de “sintoma”.
Existe uma equivalência entre sujeito e sintoma. O sintoma é aquilo que aparece de uma abstração que poderia ser chamada de “sujeito”. O que Freud observou foi exatamente os sintomas, quer dizer, aquilo que se manifesta. Na origem grega da palavra – symptôma –, sintoma também quer dizer “coincidência”. Como indica a preposição sym, o sintoma é onde duas ou mais coisas coincidem. Por exemplo, se alguém tem febre, deve ter uma infecção. Isto é um sintoma porque existe um encontro entre duas variáveis. E adiferença entre um sujeito e um outro – este é o meu sintoma, não o de Pepita, nem o de Samyra – quer dizer que o meu ponto de cruzamento entre as diferenças não é o mesmo de Pepita ou de Samyra. É uma posição relativa que cada sujeito ocupa nesse traçado.


E nesse sentido preciso, esta talvez seja a grande contribuição de Freud, ao menos para a cultura ocidental: não é possível definir a normalidade. Não é somente uma questão ideológica ou progressista da parte de Freud, mas, a partir dos princípios freudianos, é logicamente impossível a definição da normalidade. A normalidade estatística não basta e a normalidade qualitativa é, necessariamente, nesse esquema, reacionária, alguma coisa que tenta segurar o movimento de produção do sujeito.


É claro que isto dito hoje, a partir de Lacan e de outros pensadores que discutiram a questão da normalidade, como a discussão feminista, gay, é mais fácil de assimilá-lo do que no tempo de Freud. Verificamos seu esforço para romper com a medicina, para se separar da dimensão da normalidade/anormalidade, da doença/saúde.
Hoje em dia se vê, por exemplo, alguém como Gilles Deleuze, numa entrevista dada em 1990, dizer que a maioria e as minorias não se distinguem pelo número. Há uma certa heresia nisto e, no entanto, é uma lógica perfeita. Podemos dizer que uma minoria pode ser mais numerosa do que uma maioria. O que define a maioria é um modelo com o qual é preciso estar conforme. Por exemplo, o que é a maioria? A maioria é o europeu, médio, adulto, macho, habitante das cidades. Esta é a maioria, mesmo que seja 30% da população. Enquanto que uma minoria, ainda com Deleuze, não tem modelo, é um devir, é um processo. Então, se colocamos a minoria em movimento, sempre num processo de formação, diremos que a maioria não é ninguém, é um saco vazio. Não tem ninguém na maioria porque ninguém vai conseguir representar corporalmente essa dimensão do europeu, médio, adulto, macho, habitantes das cidades. Ele pode ser macho e não ser europeu, pode ser habitante do campo, enfim, a variação é quase infinita. Então, não há normalidade, pois o sujeito é sempre efeito de um cruzamento. Não podemos falar de normalidade como se fosse um ponto onde se postula um dever ser que sirva para todo mundo. Isso é uma contribuição gigantesca de Freud para a cultura, dizer que qualquer escolha ou nomeação de uma normalidade – ou, com Deleuze, de uma maioria – implica uma certa violência – às vezes necessária, como, por exemplo, na medicina ou na politica de governo. Não se pode governar sem se situar em relação à maioria/ minoria, à normalidade/anormalidade.


Freud chegou a esta conclusão a partir de uma relativa indiferença que ele reconheceu no objeto sexual. Eu aconselharia vocês a lerem um livro de um contemporâneo de Freud, alguém que foi muito correto com ele. Freud foi pessimamente recebido pelos médicos de Viena e Krafft-Ebing levou Freud para fazer conferências, apesar de não pensar como ele. Kraft-Ebbing o acompanhou até um ponto, houve uma ruptura e depois veio a definição freudiana da sexualidade, nos Três ensaios sobre a sexualidade. Resumindo esta diferença, podemos dizer que, para Freud, não há objeto adequado ao sexo, não há objeto pré-definido para o sexo.
Dez anos depois, em As pulsões e suas vicissitudes, texto que é uma espécie de complemento aos Três ensaios sobre a sexualidade, Freud diz algo decisivo: o objeto é o que há de mais variável na pulsão e, originalmente, o objeto não está ligado a ela. Assim, objeto e pulsão não estão ligados. Freud dirá que a única razão para que pulsão e objeto se associem é a satisfação. Não há nenhuma finalidade teleológica no encontro sexual. Ele guarda em si mesmo e em qualquer caso uma espécie de contingência. Quer dizer, deve haver alguma contingência no encontro sexual, justamente porque cada encontro termina inventando, com pouca coisa, uma equivalência, uma normalidade, um encontro. É claro que essa variabilidade do objeto não quer dizer uma abertura infinita, como se o sexo tivesse capacidade de se dirigir a qualquer objeto do mundo; há uma limitação na escolha, um gosto sexual que caracteriza tal ou qual pessoa.


Existe um outro registro além do simbólico, ou seja, além da simples equivalência entre um objeto e um significante, capaz de deter a busca do sujeito pelo seu objeto que, em principio, seria infinita. A repetição obsessiva faz com que nunca aconteça um encontro. Para que nunca aconteça, o melhor recurso é a procrastinação.  Não para deixar para amanhã, mas para que, de hoje para amanhã, eu possa dizer: amanhã, amanhã, amanhã..., para sempre. Podemos encontrar em Freud vários textos que dão a ideia dessa infinitização, que não é sem limite. Por exemplo, em O fetichismo, na descrição clínica que Freud faz da gênese da perversão, e onde ele demonstra como a escolha de objeto se prende, sobretudo em certos sujeitos, não a alguma adequação natural, mas ao lugar onde a falta de objeto ocupa na castração do Outro. Esta é a lógica de Freud no fetiche. O fetiche, então, é o objeto que falta à mãe e, por isto mesmo, torna-se para o sujeito, como dizia Lacan, uma “condição absoluta”


É uma expressão que Lacan usa em diversas oportunidades, “uma condição absoluta de seu desejo e de seu gozo”, ou na frase que encerra o Seminário, livro 11: os quatros conceitos fundamentais: “o desejo do analista não é um desejo puro, é o desejo de obter a diferença absoluta”. A cada vez que a palavra “absoluta”  aparece fora da religião é bom a gente prestar atenção, porque ela tem um peso muito importante.
A expressão “desejo puro” tem várias indicações; eu citaria um livro de Bernard Bass onde ele faz uma correspondência entre desejo puro e desejo de morte. Na literatura de Lacan podemos pensar na correspondência em Antígona entre o desejo puro que confina ou equivale ao desejo de morte. Na frase de Lacan, a diferença absoluta está em oposição ao desejo puro. O analista, na sua prática, pode chegar à diferença absoluta com seu paciente, sob à condição de que renuncie ao desejo puro. Então, é mais que uma oposição. Um dos logros do analista é um certo ativismo que pretenda levar ao desejo puro.
Na lógica de Kant com Sade, o desejo puro pode ser lido como a estratégia sadiana de como se chega a eliminar a barra, a limitação que o sujeito recebe do simbólico. Em um texto muito conhecido de Jacques-Alain Miller, a Teoria de Turin, de 2000, ele falou da Escola como um sujeito. Se Escola é um sujeito, ela pode ser interpretada. Foi salientada esta tarefa dos nossos Analistas da Escola, a ousarem a interpretar a Escola como um sujeito. Nesse texto, Miller utiliza a expressão “diferença absoluta” em relação  com o desejo puro. Ele diz o seguinte: “este desejo, o desejo do analista, não é, no entanto, um desejo puro, é o desejo de separar o sujeito dos significantes mestres que o coletivizam”.


Então, vocês vejam que na ideia do desejo, na estratégia do desejo, existe sempre, confessadamente ou não, uma separação. O trabalho clínico ou político com o desejo tem como terreno, como leito, uma estratégia de separação. No caso de separar o sujeito dos significantes mestres que o coletivizam, podemos citar vários testemunhos de AEs que vão dar conta disto. Por exemplo, do meu amigo Marcus André Vieira, com aqueles três apelidos, ao longo da história: “mosquito elétrico”, “miquito”, e aquele ele fez na sua análise, “mordida vida”. Na história desse sujeito, Marcus André, vemos que há nessa sequência de significantes mestres um processo de separação. Existe uma depuração do sentido do significante mestre de tal maneira que, ao fim, este significante mestre, perdendo o sentido, passa a ser apenas um nome próprio que indica uma separação. Por exemplo, alguém que fosse conhecido por um xingamento. Isto acontece. No nordeste, por exemplo, um cara careca pode ser chamado de cabeleira. Então, como é que esse careca vai assimilar o nome de cabeleira que começou com um sarcasmo e torná-lo um nome próprio, já que ele não vai conseguir mudar seu apelido na cidade? Então, existe a separação que vai no sentido contrário ao sentido, que vai esvaziando-o e separa o sujeito dos significantes mestre que o coletivizam. Isola-se a sua diferença absoluta. Trata-se de circunscrever a solidão subjetiva e também o objeto mais-de-gozar, localizando o objeto do sujeito que se mantém a partir desse vazio, e que o preenche ao mesmo tempo.


É muito interessante esta formula do Miller – o vazio e o preenchimento no mesmo encontro entre o sujeito e o objeto. Miller diz que este é o desejo de Lacan. A Escola procede dele, deste desejo, de um desejo de separação. Parece que Lacan teria a ideia, quando criou o Cartel, de provocar ao mesmo tempo um ideal – não há coletivo sem um ideal –, mas que tivesse no interior do seu funcionamento ao menos um rudimento do processo de separação. Então, desejo puro é contraditório com a diferença absoluta. A conquista da diferença absoluta não é um processo de purificação. Aliás, “purificação” é um palavrão depois da Segunda Guerra, por se tratar de um termo que alude ao Nazismo. Pelo contrário, é aquilo que pode surgir como consequência de um desejo impuro. É com sua impureza que o sujeito se torna, por exemplo, um psicanalista, e não com a sua pureza. O desejo impuro de cada sujeito é aquilo que liga o sujeito ao seu objeto singular de gozo.
No livro Vida de Lacan, de 2010, Miller trata Lacan nesse texto como alguém que não deve ser seguido como exemplo. Para citar um fragmento que o ilustra, diz que Lacan não obedecia os sinais vermelhos de trânsito. Miller fala dos objetivos da análise: uma análise serve para o sujeito se desfazer das suas imagens para chegar ao dessemelhante – que Lacan chamou de “diferença absoluta”. Mais adiante, no mesmo texto, Miller diz que a diferença absoluta tem relação com o que Lacan chamou de “travessia da fantasia”. Ou seja, a travessia da fantasia é uma tentativa de atingir o que há de real na própria vida. Neste sentido, o passe é um dispositivo que pretende trazer a público a maneira pela qual um sujeito produziu uma diferença absoluta. É uma diferença que é absoluta para aquele determinado sujeito, em particular. E, no final, resta um objeto que, em 1973, em Televisão, Lacan associou ao santo. A diferença entre o santo da religião e esse santo lacaniano é que este pratica a descaridade, o que  o afasta, dentre outras coisas, da prevalência da justiça distributiva. Ou seja, da tentativa de ignorar a diferença.


Na Nota Italiana, mais ou menos da mesma época, Lacan associa o analista ao dejeto, ao ele chama de “rebotalho”, ao que restou de alguma operação. Existe um trabalho para produzir um rebotalho. O analista é o contrário da Gata Borralheira, que vai do começo até o final deixando de ser o rebotalho. Ele começa como um grande homem, um grande intelectual, um neurótico da melhor estirpe que, aos pouquinhos, se torna um rebotalho. E é com o seu desejo impuro, com sua miséria, que o analista vai se tornar analista, e não com sua verve maravilhosa, com sua capacidade, etc. Não chega a ser um incapacitado, é com sua capacidade também.


Parece-me que não seria uma redundância acrescentar que a diferença absoluta é aquela diferença que não é relativa. A diferença sexual entre homem e mulher, por exemplo, é uma diferença relativa, porque depende de uma comparação. Vocês pensam, por exemplo, que eu sou um homem, mas se vocês pensam que eu sou um homem é porque vocês sabem o que é uma mulher e não coincide com o meu jeitão ser uma mulher. E então, vocês deduzem: “já que ele não é mulher, é homem”. E Lúcia, vocês irão dizer: “já que ela não é um homem, é uma mulher”. É uma diferença relativa que Freud, sobretudo em 1923, na Organização Genital Infantil, situa como aquilo que é definitivo para a psicanálise, aquilo que Marx fez com a moeda. Freud cifrou o falo como o equivalente universal das trocas. Então, a psicanalise inventou alguma coisa que pode parecer um contrassenso, que homens e mulheres são diferentes porque nenhum dos dois tem o falo. Há um vazio fálico em homens e mulheres, logo, eles são diferentes. Qualquer lógico chamaria esta frase de absurda, mas para Freud ela se mantém. Freud deixou uma brecha, que Lacan vai radicalizar em relação à mulher: nenhum dos dois tem o falo e nenhum dos dois sexos é A mulher. Continua parecendo um contrassenso, mas na clínica psicanalítica é uma experiência cotidiana. Tanto o homem quanto a mulher estão em exterioridade em relação ao que seria A mulher, essa tal que não existe.
Então, a diferença absoluta, a qual se trata de levar o sujeito em análise, é o terreno daquilo que é incomparável. É aquilo que excede as diferenças relativas. Ou seja, não basta, para se estabelecer a diferença absoluta, saber, ou mesmo assumir ser  homem ou mulher. Não basta se definir o lugar ou uma escolha no terreno das diferenças relativas. Lacan situa o objetivo estratégico da psicanálise na produção da diferença absoluta e não relativa. A diferença absoluta não é a evolução da aceitação das diferenças relativas. Existe um corte, existe um abismo, entre a diferença relativa e a diferença absoluta. Ora, isto tem como consequência que fica excluída qualquer ideia de uma completude entre os sexos.


Eu achei na internet, justamente na discussão sobre o casamento gay, uma afirmação de um importante psiquiatra francês, Dr. Cristian Flavinni – coordenador do setor de criança e adolescente do Hospital da Salpêtrière em Paris, sempre dirigido por pessoas importantes. Ele diz uma coisa que me chocou um pouco sobre a filiação, que, de fato, é um ponto sensível das iniciativas que envolvem o casamento gay. O casamento gay é uma coisa que quase todo mundo aceita, e o ponto sensível que está sempre em discussão é a questão da filiação. Esse psiquiatra diz o seguinte: na medida em que uma criança sabe que nasceu de um pai e de uma mãe, está localizada a diferença entre os sexos, e essa completude entre os sexos vai restaurá-la na sua ferida narcísica. Ou seja, o casal parental cura a ferida narcísica pelo fato de ser um casal, uma junção de diferenças, o que daria uma base de sua construção psicológica. Esta frase, me parece, é muito representativa.
Em 1930, em O mal estar na civilização, Freud diz o contrário: no encontro entre os sexos existe alguma coisa que resiste à complementariedade. E é este desarranjo fundamental que nos constitui. Ele afirma que há algo da própria função do sexo que nos nega satisfação. O que o Freud está dizendo é que, supondo o melhor encontro sexual, ou seja, aquele em que a fantasia se vê quase satisfeita, existe alguma coisa da própria função sexual que não nos leva à satisfação completa. Lacan sintetizou isto, dizendo não há relação sexual, ou não há proporção sexual.


Para finalizarmos, um último ponto ainda sobre diferença absoluta. Primeiro, está a diferença absoluta como objetivo estratégico da análise; segundo, aquilo que não é a reunião de todas as diferenças relativas. A diferença absoluta supõe um corte com a diferença relativa –, ou seja, se você somar todas as diferenças relativas do mundo, você não está definindo o que é a diferença absoluta, porque a diferença absoluta se dá como uma ruptura com qualquer somatória. A diferença absoluta é alguma coisa de muita solidão.
Creio que há uma certa correspondência com o conceito de “dignidade” em Kant, que podemos encontrar na Fundamentação da metafisica dos costumes, onde ele usa uma oposição para definir o que é a dignidade. Mais que uma oposição, Kant falou de uma exclusão mútua: no reino dos fins, tudo tem, ou bem um preço, ou bem uma dignidade. O que tem preço, em seu lugar também se pode ter outra coisa como equivalente. Mas o que se eleva acima de todo preço, não permitindo, por conseguinte, qualquer equivalente, tem uma dignidade.
Então, o que é o preço? O preço é uma diferença relativa. Se eu compro uma camisa por R$200,00 e um copo por R$5,00, posso tratar os dois sem nenhuma consideração pela diferença absoluta entre eles, como aquilo que seria a qualidade do copo, ou da camisa, e me situar simplesmente na diferença relativa. Ou seja, o que é uma camisa? É aquilo que vale R$200,00. O que é um copo? Aquilo que vale R$5,00. Essa seria uma diferença relativa. Kant vai dizer que isto é próprio das coisas. Então, as coisas não têm dignidade, enquanto os seres racionais têm dignidade porque não têm preço. Kant está demonstrando o imperativo categórico, uma das suas versões segundo a qual o homem não pode ser tomado como o meio, mas sempre como o fim. Esta seria uma maneira de pensar o que seria a diferença absoluta. A dignidade é aquilo que não tem preço, enquanto as coisas têm preço.


Kant distingue, nessa mesma passagem, o que ele chama de “preço de mercado” que atende às necessidades, e o que ele chama de “preço afetivo”, quando se trata do que está ligado ao gosto. A dignidade é aquilo que não tem preço porque se refere a um objeto que não tem equivalência, se refere a um objeto cônico. A gente sabe na paixão amorosa como cada um de nós já disse pelo menos uma vez na vida: “você é único ou única para mim”. Os dois estão mentindo! (Risos). Mas isto é um laço que a gente sabe que vai durar enquanto durar a humanidade, esta necessidade da elevação do objeto equivalente à dignidade do objeto inequivalente, do objeto único.


A dignidade é oposta ao que tem preço, porque não faz parte da cadeia metonímica, através da qual os objetos se sucedem. Não está submetida à comparação, sob a égide de um equivalente universal das trocas, como Marx diz, da moeda. Podemos então pensar o relativo e o absoluto: absoluto, porque nada vale mais que uma moeda desde que ela acompanha os preços; e relativo porque sempre preside uma comparação entre dois objetos. Um copo e uma camisa seriam diferentes porque um custa R$5,00 e o outro R$200,00, e esta seria a lógica dos preços, o que faz com que uma moeda, no final das contas, valha qualquer coisa. Se a gente diz hoje em dia que tudo virou mercadoria, isto equivale a dizer que a moeda vale qualquer coisa. Não tudo, mas qualquer coisa, qualquer coisa pode ser representada por uma moeda, inclusive aquilo que antes representava o que não tinha preço. Existe uma crise na extensão, nos limites da dignidade. Esta é uma crise que talvez a gente esteja atravessando hoje em dia, uma crise de civilização. Não é uma crise politica, nem psicanalítica, é uma crise de civilização.


Então, a dignidade em Kant pode ser entendida como algo que interrompe o movimento em que os objetos fariam uma serie continua e sem limite. A dignidade supõe uma interrupção da serie.  Impossível não lembrar da questão dos contratos, da oposição entre lei e contrato que foi discutida no Campo Freudiano há dois anos atrás. Por exemplo, eu me lembro de Éric Laurent, num texto que se chama “O nome do pai, entre realismo e nominalismo”, onde ele diz que a hegemonia dos contratos – e aqui ele cita Jean-Claude Milner – é sem limites. Sem limites não quer dizer a diferença absoluta. Sem limites quer dizer uma série dentro da lógica da diferença relativa, da qual você não vê fim. É a ideia do relativismo, onde tudo vale qualquer coisa, alheia à lógica da psicanálise, no sentido de que a psicanalise encontra o limite na sucessão dos significantes, seja por conta do imaginário – há alguma coisa que se configura e com isto sua série se interrompe – ; seja como real. A gente pode pensar, por exemplo, numa série sintomática ou numa série discursiva, como Lacan vai ensinar, que em algum momento sobrevém a angústia. Isto sim é um ponto de interrupção, do processo de produção das diferenças relativas.   

 

Conferência transcrita por Cristiane Barreto, estabelecida por Maria Josefina Fuentes e revisada pelo conferencista.

 

Resenha do trabalho realizado na

XVI JORNADA DE CARTÉIS DA EBP-MG

Maria Bernadete de Carvalho e Maria das Graças Sena

 

No dia 22 de junho de 2013, aconteceu a XVI Jornada de Cartéis da Seção MG da EBP. Essa Jornada contou com a coordenação de nossa colega Lúcia Grossi que, dando início aos trabalhos do dia, ressaltou a importância e o significado dos Cartéis na Escola como um espaço de formação e produção de saber, articulados com a clínica de orientação lacaniana. Ela retomou a programação da Jornada, informou sobre a existência de uma apostila com os trabalhos a serem apresentados, sobre o bazar de livros e revistas e ainda convidou a todos para um almoço na Escola.

 

A Jornada contou com a presença de Romildo do Rêgo Barros, AME da Associação Mundial de Psicanálise, nosso colega da Seção Rio de Janeiro. Em sua Conferência sobre “O lugar da diferença em psicanálise”, Romildo nos relatou parte de um trabalho em curso que busca situar os diferentes contextos em que a questão da diferença está colocada para a psicanálise.

 

Logo de início, ele se refere à noção de Tiquê, utilizada por Lúcia em sua apresentação. Afirmando que a diferença tem um lugar cativo na psicanálise, Romildo a situa também no trabalho do cartel, onde, do “entrechoque entre o coletivo e o individual”, resultariam efeitos de formação.

 

Passando pelas diferenças entre posições subjetivas; pela singularidade do sintoma que se opõe a toda definição da normalidade; pela contingência do encontro sexual; Romildo se deteve sobre o “desejo da diferença absoluta”, que Lacan propõe ser o desejo do analista, em seu Seminário, livro XI.

 

Romildo ressalta que o “desejo da diferença absoluta” se opõe, para Lacan, ao “desejo puro”. O desejo do analista, impuro, visaria separar o sujeito dos significantes mestres que o coletivizam, para circunscrever sua solidão, seu vazio e o seu preenchimento.

 

No Cartel, como uma formação de grupo, o ideal coletivo, necessário, deve dar lugar ao processo de separação, marcado pelo desejo impuro de cada um.

 

Localizando, ainda, o que é da ordem da diferença absoluta, Romildo a aproximou da noção de dignidade em Kant. Da mesma forma que a diferença absoluta, a dignidade, para Kant, se contrapõe à equivalência obtida através do cálculo da diferença relativa que comanda, por exemplo, as trocas mercantis. Romildo finaliza indicando a crise de civilização que sobrevém, quando os limites da dignidade se deslocam, ameaçados pelo império das relações mercantis.

 

Após essa bela Conferência, Romildo ainda interveio como elemento êxtimo, acompanhando e discutindo os trabalhos apresentados, dando valiosas contribuições ao debate e aos autores.

 

Contamos também com a participação efetiva de nossas colegas coordenadoras das mesas: Paola Salinas e Maria Josefina Fuentes, da EBP-São Paulo; Cristiane Barreto e Inês Seabra da EBP-MG, que fizeram observações e comentários bastante precisos e enriquecedores dos trabalhos apresentados.

 

Treze trabalhos foram apresentados na Jornada, distribuídos em quatro mesas.
A primeira mesa, intitulada “A clínica da angústia”, foi coordenada por Paola Salinas que também colocou questões aos trabalhos de Marina Gabriela Silveira (Angústia e sexualidade), de Maria Alice Silveira (O manejo da angústia na instituição) e de Claudinéia Bento (Angústia na mulher).

 

A segunda mesa, coordenada e debatida por Maria Josefina Fuentes, contou com a participação de Mateus Zocratto (A feminilidade e os sintomas contemporâneos), de Teresa Mendonça (Desejo do analista), de Andreia Barbosa (Efeitos de sujeito advindos do cartel) e de Denise Barbosa (O nada da anorexia e o da pulsão) reunidos sob o título de “O analista: formação e prática”.

 

A terceira mesa e a quarta, respectivamente, “O corpo e a psicose” e “Do sintoma ao sinthoma”, foram reunidas por motivos de ordem operacional. Os trabalhos de Marcelo Bizotto (Auto erotismo e psicose ordinária), de Adriana de Vitta (Como fazer com as mulheres?) e de Michelle Oliveira (A insistência pulsional na psicose) foram comentados por Cristiane Barreto. Os trabalhos de Adalberto Lima (Os apelos da carne), de Diego Soares (O uso lógico do sintoma) e de Alex Keine de Almeida (Sintoma e sinthoma: tão perto, tão longe) foram comentados por Inês Seabra Rocha.

 

Além de textos voltados para uma revisão da teoria lacaniana, também foram apresentados fragmentos de estudos de caso, numa tentativa de teorizá-los a partir do ensino de Lacan, visando sempre a reflexão sobre o papel da psicanálise no mundo atual.

 

Pôde-se constatar nessa Jornada não só a função formadora do Cartel para todos, novos e antigos interessados pela psicanálise, mas também sua função de porta de entrada na Escola, considerando-se que grande parte dos participantes não mantém com ela outro vínculo formal. Ao buscarem na Escola esse espaço de produção de saber que é o Cartel, esses participantes evidenciam a transferência de trabalho operacionalizada por esse laço institucional.

 

Escritas cartelizantes

Texto apresentado na  XVI JORNADA DE CARTÉIS DA EBP-MG

EFEITOS DE SUJEITO ADVINDOS DO CARTEL

Andréia Barbosa de Faria

 

Após uma longa jornada como cartelizante, é chegado o momento e o “desafio” de, ao menos, tentar rascunhar a minha produção. Apesar das muitas trocas vivenciadas no Cartel, continuo refletindo a respeito dos desafios da Psicanálise.

 

Sim, pois desde o momento em que optei por rascunhar e tornar público a minha produção fiquei pensando: O que é que eu vou escrever? Qual foi exatamente o meu produto? Como resumir, em alguns caracteres, quase dois anos de caminhada? Quanta coisa para dizer e também para calar, para contar, para contribuir...

 

Mergulhada nestas reflexões, lembrei-me de como tudo começou, por isso, pretendo iniciar com uma definição sucinta do que seja o Cartel, falando sobre o seu funcionamento e, por fim, fazer um breve histórico da minha experiência como cartelizante. Desta forma, peço licença aos possíveis leitores para compartilhar um momento de breve teoria e nostalgia pessoal.

 

O Cartel é uma invenção de Lacan e é um dos dispositivos, além do passe, que sustenta a Escola de Psicanálise. A sua composição consiste no (des)encontro de quatro pessoas e o mais-um e é em torno deste cenário que a produção acontece.

 

É comum e até arrisco dizer que é também saudável que neste dispositivo aconteçam crises de trabalho e é daí que muita coisa do Real aparece. Compete então ao mais-um manejar e explorar tais crises dentro do cartel.

 

A minha caminhada como membro de um Cartel ao longo destes anos foi “invadida” por sentimentos diversos: angústia, aprendizagem, preguiça, amadurecimento, enfim... O que Lacan tão bem nomeou de momentos de crises de trabalho.

 

Espera-se que o processo de elaboração decorrente do cartel resulte em um produto próprio de cada um dos membros envolvidos, mais precisamente, como efeitos de sujeito (sujeito do inconsciente). O Cartel proporciona a passagem do sujeito ao discurso analítico. O produto do Cartel é sempre individual e nunca coletivo.

 

Vale ressaltar que a amarração do cartel se dá de forma borromeana e que o seu enlace já tem uma data prevista para o seu desenlace, eliminando assim uma possível relação de um vínculo eterno entre os envolvidos e também para não estagnar a produção de cada sujeito.

 

O cartel é então uma possibilidade de iniciar um novo saber e este sim não tem data marcada para acabar. Trata-se de um espaço de transmissão da psicanálise que se dá a céu aberto e que resultará na elaboração e na produção individual de cada sujeito.


A formação do Cartel do qual fiz parte se deu de forma espontânea, ou melhor, o que nos uniu foi o desejo pela psicanálise. E o mais-um nos surgiu por meio de uma indicação e em momento algum recusou o nosso convite, pelo contrário, abriu a porta do seu consultório e aceitou o lugar/papel de ser o interlocutor deste precioso e difícil trabalho.

 

Desde o início, o mais-um, representado na pessoa de Lázaro Elias Rosa, membro da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas Gerais (EBP-MG) acolheu a nossa demanda de trabalho. O que para mim, em especial, fez toda a diferença na minha produção e na minha formação pessoal e profissional.

 

Vou agora ser um pouco mais ousada e tentar rascunhar o que eu compreendi como sendo algo que é da ordem, da função do mais-um e não dos cartelizantes em si.

 

Em uma tarde de Cartéis do ano de 1986, Miller utilizou-se da expressão “elaboração provocada”, mencionada por Pierre Théves, a partir de um texto de Lacan, para indicar do que é da responsabilidade do mais-um dentro do cartel. Miller vai então nos apresentar cinco variações possíveis, a saber:

 

Variação I: Uma fórmula com contrastes; variação II: Uma elaboração é sempre provocada; variação III: A elaboração do discurso; variação IV: O agente provocador e variação V: A arte de ser mais-um.

 

De acordo com Miller, toda a elaboração de cartel é resultante de dois prefixos: ex (a partir de) e pró (diante de), ou seja, o trabalho é provocado por certo pedido/apelo do mais-um que consequentemente provocará algum tipo de movimento/construção nos sujeitos envolvidos.

 

Ainda segundo Miller, toda elaboração de cartel se dá pela provocação do mais-um junto aos membros cartelizantes, caso contrário, a preguiça prevaleceria. Vale mencionar que o passe é também uma elaboração de saber provocada. Compete ao mais-um, ou ao analista no caso do passe, saber manejar/provocar tal elaboração para que o sujeito apareça. É muito importante que as pessoas que ocupam tais funções/lugares não confundam os papéis de suposto saber com o agente de saber que faz toda a diferença na elaboração ou não do outro.

 

Miller apresenta o Cartel como sendo um tipo de banquete, ou seja, faz-se necessário que todos estejam em trabalho, inclusive o mais-um; só assim haverá produção de saber. Para o autor em questão, só existe produção de saber quando há embaraço dos sujeitos envolvidos e quando o mais-um auxilia neste desembaraço.

 

O Cartel produziu em mim tantas “coisas”! Foi, sobretudo, uma oportunidade de remodelar meus saberes acerca da psicanálise. Um tempo de investimento que me fez progredir e amadurecer na minha trajetória psicanalítica. Em especial, surgiu uma demanda, ou melhor, a confirmação de um lugar de pertencimento, de um desejo de me inscrever no curso de psicanálise e assim eu fiz. Como cartelizante, pude “oficializar” a minha escolha pelo campo freudiano.

 

Agora me pergunto: será isso mesmo o que chamam de produto de cartel? O fato é que o saldo deste percurso foi positivo e formaliza o meu produto como um saber inacabado. Rompe-se um laço com o Cartel e um novo nó se amarra a Escola.

 

Apresento e deposito o meu produto na XVI Jornada de Cartéis da EBP-MG e confirmo e reafirmo a consequência deste cartel como efeitos de sujeito uma vez que já estou concluindo a unidade II do Curso de Psicanálise no Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais (IPSM-MG). Interpreto este movimento como sendo a confirmação de um lugar de pertencimento, a escolha pelo campo freudiano.

 

O termo “elaboração provocada” me faz refletir que as palavras que eram unicamente soltas começam a ter mais sentido, como se fosse a construção de uma teia. 

 

Para finalizar, compartilho com vocês três pontos que considero fundamentais na prática analítica, desafios que se colocam diante de nós a todo instante. O primeiro que, no meu leigo entendimento, faz menção ao ponto mais importante: a própria análise. O segundo: o zelo por uma formação contínua em psicanálise, pois definitivamente não creio na ideia de algo pronto, formatado e modelado. E o terceiro ponto: a supervisão, que na minha opinião e experiência clínica diz de um cuidado com o paciente e com a própria prática psicanalítica, diz de um limite, de uma borda que precisa ser construída.

Referências Bibliográficas
JIMENEZ, S. O Cartel: conceito e funcionamento na Escola de Lacan. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1994.
LACAN, J.  “D’Écolage”.
MAHJOUB, L. “Produto próprio de cada um In: Papéis do Simpósio, Cartel e Transmissão, Belo Horizonte, pp. 8-9.
MILLER, J.-A. “Novas reflexões sobre o Cartel: In: Correio, nº 10, novembro de 1994/fevereiro de 1995, pp.11-16.
MILLER, J.-A. “Cinco variações sobre o tema da elaboração provocada. In: Opção lacaniana, nº 1, 1992, p. 6.

 

 

AGENDA DOS CARTÉIS NA EBP

 

EBP-RIO DE JANEIRO

Diretor de Intercâmbio e Cartéis: Elza Freitas

 

JORNADAS DE CARTÉIS DA EBP-RJ

DIA: 31 de agosto
Sede da Seção Rio de Janeiro
Convidada: Maria Josefina Sota Fuentes (Diretora Secretária da EBP)

 

DELEGAÇÃO ESPÍRITO SANTO

Responsável pelos Cartéis: Tânia Martins

 

NOITE DE CARTÉIS

DIA: 28 de agosto às 20h30
Apresentação do Cartel “Leitura do Seminário de um Outro ao outro de Jacques Lacan”. Teremos nesta noite os estados de trabalho de Lucas Fraga Gomes com o tema “A verdade” e Hitala Maria Campos Gomes, que investiga o tema “O Um e o Outro”.

 

ACONTECEU

No dia 3 de julho, na Noite de Cartéis, apresentaram trabalhos George Avance Ramos e Alberto Murta, cartelizantes do Cartel “Leitura de A terceira de Jacques Lacan, composto por: Alberto Murta (mais-um), Elisa Martins, George, Judite Pires Torres e Tania Mara Alves Prates.


Além das discussões dos temas apresentados, que foram muito interessantes e provocaram o interesse dos participantes da Noite de Cartéis, ressalto dois aspectos que mostram a especificidade do trabalho em Cartel.
O primeiro cartelizante a falar se questiona sobre: como se produz um texto para Noite de Cartéis? Inicia sua fala dizendo que seu texto tem um título ainda pouco definido e, diferente daquele que havia anunciado,  “Linguagem e real”,  propõe que seja “Psicanálise e sua relação com o sujeito da ciência”.
Faz sua apresentação, recebe as questões e discute com os participantes. Ao final da discussão, outro cartelizante desse mesmo Cartel conclui que o título do texto do colega é “A relação do discurso do mestre e do discurso da ciência com a psicanálise na Terceira”. Penso que este é um exemplo do imprevisto que está presente no dia a dia do trabalho em Cartel, o qual tendo lugar, não é sem consequências no percurso de cada cartelizante.


O segundo inicia dizendo que A Terceira é um texto muito denso, o qual “é impossível ser lido sem Cartel”. Faz sua apresentação e, no momento da discussão, sua afirmação radical é interrogada, ao que ele responde dizendo que o texto angustia. Acrescenta sua reflexão sobre as consequências para sua escuta e para seu percurso das interpelações que recebe de seus colegas cartelizantes, que lhe ensinaram a ouvir os diferentes momentos e percursos que se encontram neste Cartel, e o quanto o exercício de ouvir e fazer-se ouvir pelo diferente lhe ensina. “O cartel força a respeitar o tempo analítico de cada cartelizante.”
Por Tânia Martins

 

DELEGAÇÃO MT/MS

Responsável pelos Cartéis: Sau Pereira Tavares de Oliveira

 

ACONTECEU

Nos dias 21 e 22 de junho, ocorreu em Campo Grande, na sede da Delegação Geral MS/MT, a Jornada Preparatória para o VI ENAPOL, que faz parte dos trabalhos orientados pelo tema: Falar com o corpo: a crise das normas e a agitação no Real. No segundo dia do evento, foram apresentadas duas produções escritas por meio do dispositivo de Cartéis fulgurantes. O convite para o trabalho foi lançado pelo coordenador da Delegação, Ary Farias, 40 dias antes do evento. Os interessados se reuniram em dois Cartéis cujo breve percurso culminou nos trabalhos que foram disponibilizados quatro dias antes do evento e debatidos no segundo dia da Jornada, que contou com a contribuição da conselheira da EBP Simone Souto, sendo Ary Farias o moderador da mesa.


O primeiro Cartel foi composto por Tânia Lanzarini Nogueira, Aparecida de Andrade Lima, Márcia Cristina de Campos e Gleice Taciana Barbosa, com Carla Serles como o mais-um. O trabalho foi intitulado “Indelével desafio”. O texto foi organizado numa breve introdução, seguida de argumentos teóricos sobre como é a clínica analítica para o século XXI e, após, por uma sequencia de notações a respeito do Real. Três fragmentos escritos foram usados para dar consistência prática às observações dos efeitos do Real: uma vinheta clinica, outra jurídica e um poema de João Cabral de Melo Neto.


A discussão sobre o fragmento de caso clinico, intitulado Full Time, sobre um jovem rapaz entre duas mulheres – sua mãe e sua namorada –, fez aparecer as duas faces do superego: de um lado, pelo imperativo de gozo através garota liberta das normas e, de outro, pelo desespero da mãe alertando-o dos riscos que corre em relação à lei, por envolver-se com uma garota tão jovem. O fragmento jurídico – Transtorno (I)legal –  trouxe para discussão o caso do “maníaco da cruz” e o impasse legal que o mantém à deriva das normas, restando a invenção como alternativa à psicanálise e ao mundo. A poesia alinhada com a psicanálise, por sua vez, foi apontada pelo significante tocando o corpo, na escrita, menos livre para o discurso e mais próximo da letra.


O segundo Cartel, por ordem de apresentação, foi composto por Katiuscia Kintschev, Fernanda Fernandes, Vanessa Quadros e por mim, com Renata Tinoco como mais-um. Sua produção, o texto “Corpo violento, corpo violentado”, apresentou um percurso pelo tema da agressividade desde a identificação imaginária na primeira clínica de Jacques Lacan, passando pelo tema atual do bulling, tratando das multiplicidades de versões na clínica contemporânea.


A discussão sobre o fato do significante bulling, relativamente novo, nomear algo já antigo na civilização, mostrou-nos a possibilidade de abordarmos de forma nova conceitos já antigos e que um novo significante sempre tem efeitos. Discutiu-se a respeito das manifestações que agitaram as ruas do Brasil na semana da Jornada, com suas várias vozes e diferentes demandas, sem um discurso unívoco. A parceria bulingador/bulingado, tomada mesmo como parceria, já apresenta-se como uma visão que desloca a agressividade do bulling do eixo identificatório. Por fim, sendo o conceito de infantolatria um elemento do discurso da ciência e do capitalismo que coloca os jovens em um mercado infantil, avesso ao jovem saudado pela psicanálise, preparado para agir na adversidade, pronto ao imprevisto.

 

CONVITE: FORMAÇÃO DE CARTÉIS FULGURANTES PARA O HAUN

Por: Paola Salinas

Cord. Comissão de Cartéis EBP

 

Caros Colegas,


Estamos nos aproximando da Buenos Aires Lacaniana em novembro, ocasião que acontecerá o Seminário Internacional da EBP, Haun – Leituras do Seminário 19:...ou pior, de Jacques Lacan. Os trabalhos se intensificam nas Seções e Delegações com atividades preparatórias. Gostaríamos de destacar o convite para que nesta preparação possam se constituir Cartéis fulgurantes em torno do tema. Além do dispositivo servir à comunidade como laço em torno do Seminário Internacional, parece-nos pertinente que uma discussão na EBP dessa grandeza possa recolher o produto dos cartéis, ou seja, o trabalho singular produzido no coletivo do cartel sobre o tema geral do Seminário: o aforismo Há-um. As referências de pesquisa do Seminário 19, que vem sendo publicadas periodicamente pelo Bibliô Referencias, certamente serão ferramentas necessárias. A aposta é que façamos um bom uso do Cartel em mais esta oportunidade, dispositivo que vivifica um laço na Escola de modo certamente subversivo e singular.


Ao Cartel!

 

 

DOBRADIÇA DE CARTÉIS ANTERIORES