Bibliô #07

Dezembro 2013

Boletim eletrônico das Bibliotecas da EBP

 

Maria Josefina Fuentes (Diretora Secretária da EBP)
Tânia Abreu (Coordenadora da Comissão de Bibliotecas da EBP)

 

 

BIBLIÔ ESPECIAL SOBRE ELENA

 

Estamos chegando ao final de um ano de trabalho intenso nas Bibliotecas da Escola Brasileira de Psicanálise. Final de ano é tempo de avaliar o que foi realizado, mas também é tempo de olhar o futuro e projetar um porvir para nossa Escola.

 

As Bibliotecas da EBP, cada uma fiel ao seu estilo e realidade, buscaram em 2013 construir uma Biblioteca Una dentro da diversidade das regiões deste imenso país. Trata-se da busca do Um que caracteriza uma Escola através da difusão de uma mesma atividade para todas as Seções e Delegações que compõem a EBP.

 

A arte, como de costume, veio em nosso auxílio iluminar o campo da psicanálise com o belíssimo documentário Elena, da diretora Petra Costa, que circulou Brasil afora em cada uma das Bibliotecas da EBP, despertando os mais intensos afetos e interesses na nossa comunidade.

 

Este Bibliô de final de ano retrata como as Bibliotecas conseguiram, por um lado, respeitar as diferenças e manter as particularidades e, por outro, difundir o Um sem cair no universal. Apresentamos, assim, as resenhas redigidas pelos nossos colegas a partir do debate ocorrido em cada uma das Bibliotecas, que foi suscitado com a exibição do documentário Elena.

 

Além disso, anunciamos que, em 2014, os diretores e coordenadores de Bibliotecas já se organizam para o lançamento do livro do colega francês Joseph Attié, intitulado Mallarmé O Livro. Com lançamento na EBP deste excelente livro, previsto para março de 2014, diversas atividades estão sendo elaboradas e um Bibliô Especial será dedicado ao lançamento.

 

Lembramos que as atividades das Bibliotecas visam não somente manter o vivo da educação psicanalítica em nosso meio, mas, sobretudo, contribuir com a formação dos analistas de Orientação Lacaniana. Neste sentido recomendamos que adotem este livro como "de cabeceira" esquentando os tambores para a atividade Una de 2014!

 

A equipe das Bibliotecas deseja a todos Boas Festas e que "quase" todos os anseios se realizam, mantendo vivo o desejo em cada um de nós!

 

 

EBP-BAHIA

Diretor de Biblioteca: Nilton Cerqueira

 

No mês de setembro, a comissão de biblioteca da seção EBP- BA, representada nesta ocasião por Julia Solano, promoveu a exibição do documentário Elena com os consequentes comentários de Marcela Antelo.

 

Tal documentário é dirigido por Petra Costa e retrata de uma maneira profundamente poética sua própria história. Neste ponto, é interessante colocar uma primeira questão: se o filme é na verdade um documentário pessoal que retrata algo da própria vida de Petra, por que se intitula Elena ao invés de Petra? Afinal estamos diante de quem? Elena ou Petra?  De alguma maneira, é através deste emaranhado de histórias, que por vezes se confundem e por vezes se separam, que o documentário vai se desenrolando, misturando imagens e recortes de vídeos caseiros com a narração da diretora e o depoimentos de amigos e familiares.

 

Elena sempre quis trabalhar no cinema como atriz. Decide tentar a carreira em Nova York, porém se depara com dificuldades e termina escolhendo o suicídio como saída para lidar com a angústia. Esse também era o desejo de sua mãe, que acabou  nunca realizando. Vinte anos mais tarde, Petra decide refazer os passos da irmã mais velha e vai para Nova York tentar a carreira de atriz.

 

Surgem aí, portanto, três personagens: Elena, Petra e a mãe delas, três mulheres com histórias que se misturam e se confundem, levando o espectador a se questionar sobre os mistérios do feminino. A própria Petra nos sugere isso quando pergunta: "Será que para se tornar mulher é preciso se mutilar, e só então ganhar pernas e dançar, como em A pequena sereia?"

 

Os comentários tecidos por Marcela Antelo caminharam por referências do cinema, da psicanálise, da literatura e das ciências humanas em geral, para seguir na trilha da feminilidade deixada por Petra. Assim, pouco a pouco, na medida em que parecemos ir desvendando a Elena de Petra, começamos então a nos questionar sobre as diversas Elenas ao nosso redor. Enfim, questões que nos remontam ao velho e, ao mesmo tempo, atual enigma da feminilidade.

 

Júlia Solano

 

EBP-SÃO PAULO

Diretor de Biblioteca: Cynthia N. de Freitas Farias

 

"Vc é minha memória inconsolável, feita de pedra e sombra. É daí que tudo nasce, e dança"

 

Assim Petra Costa finaliza seu documentário sobre o suicídio de sua irmã, Elena. Um filme autoral no qual demonstra de que maneira, pela arte, extraiu de uma perda irreparável, um sentimento de vida.

 

Para Maria Josefina Sota Fuentes, convidada pela Diretoria da Seção para comentar o filme, "o sentimento de vida,  não basta nascer para tê-lo. O desejo de viver é uma construção, no caso dela (Petra), poderíamos pensar que talvez seja um sinthoma". 

 

"Um filme sobre a vida" é um dos ensinamentos que Maria Josefina extrai dessa experiência. Ao deixarmo-nos ensinar pelo filme, segundo a indicação de Lacan , pudemos conversar, juntamente com Maria Helena Barbosa, coordenadora da atividade e os demais presentes, sobre aquilo que esse documentário fez ressoar em cada um de nós.

 

Se num primeiro momento somos tomados pelo impacto de um indizível que mobiliza a angústia e aponta para um mais-além, a beleza das imagens e das palavras vão construindo um aparato, um véu.  Como disse Maria Josefina, lembrando Lacan no Seminário 7, a beleza pode ser este ultimo véu diante da morte.

 

Este documentário nos permite esclarecer, segundo Maria Josefina, o essencial da melancolia que, além de uma crise no narcisismo, como propôs Lacan em 1938, traz em seu bojo a passagem ao ato suicida, um empuxo a se reunir ao Outro no real. Observa que algo da imagem não se sustenta nas mulheres e, mais declaradamente, em Elena que, pelo ato suicida, tentou reintegrar-se ao Outro. O melancólico coloca a céu aberto o ponto em que o Outro não responde por estrutura.

 

Por meio deste filme, a autora nos convida a pensar o suicídio do lado das mulheres a partir da inconsistência de um significante e da imagem capaz de sustentar um corpo, condição a qual os sujeitos femininos estariam mais expostos. Porém, a angústia que o filme nos suscita decorre do fato de que, apesar das nossas referências fálicas, mais ou menos consistentes, estamos todos sujeitos a um deixar cair do corpo.

 

Maria Helena aproxima as três mulheres dos três registros propostos por Lacan: real, simbólico e imaginário. Elena buscando o objeto no real; sua mãe, no imaginário, repetindo o passado; e Petra, procurando recuperá-lo no simbólico. Três formas de responder ao encontro com o objeto. O pai que se fez/faz presente pela mais profunda ausência, o traumatismo (troumatisme) vivido por Petra, possivelmente permitindo que ela pudesse retirar a consistência do Outro e sublimar sua dor pela arte, a forma como cada um dos sujeitos tentou se salvar às custas do outro, foram questões evocadas pela plateia.

 

Elena viveu a morte fora da cena, enquanto Petra coloca a morte em cena, elaborando o luto dessa perda por meio de sua arte. Arte esta que, como ela mesma diz, faz parte da vida das mulheres dessa família, mas que por si só não daria conta de afastá-la do lugar nefasto que sua mãe a coloca, identificando-a à Elena na tentativa de reparar sua perda. A aposta de sua mãe no imaginário na intensão de obter uma resposta faz com que empenhe sua vida reverberando a pergunta sem resposta sobre a morte prematura da filha. Petra, por sua vez, faz seu apelo aos Outros: às terapias às quais submeteu-se,  à  arte. Serve-se desses Outros para construir uma resposta singular. Sua resposta, a palavra que falta, o indizível de sua experiência, é evocada "nas frestas da poesia" .

 

Cynthia N. de Freitas Farias

 

EBP-RIO DE JANEIRO

Diretor de Biblioteca: Fernando Coutinho

 

No dia 20 de setembro, o filme Elena foi exibido e debatido na sede da EBP-RJ. Foi coordenado e debatido por Ana Cristina Figueiredo (Comissão de Biblioteca da EBP-RJ) e comentado por Sandra Viola e Ângela Batista.

 

O filme impressiona por sua estética e densidade, nos confunde entre o documentário e a dramatização, e nos faz mergulhar nas águas onde deslizam translúcidas essas mulheres, personagens do filme na cena final onde Petra se inspira em Ophelia de Hamlet. Era preciso perder-se e afogar-se nessas águas para sair e poder respirar a vida, diz Petra. Era preciso reencenar a morte para separar-se dela, separar-se do destino de Elena num percurso que vai sendo trilhado pela via da busca de sua arte, documentando seus passos com as imagens e textos deixados por ela.

 

A volta a Nova York, os lugares, os amigos, até o curso de teatro (Petra se matricula, desta vez em Columbia). Assim, numa narrativa pungente, a autora nos mostra com delicadeza a elaboração de um luto. Reunindo textos e vídeos de sua família, reconstrói o percurso de sua mãe desde a juventude, quando esta declara que até os dezesseis anos ela deveria resolver sua vida, ou se matar. Seu sonho: ser atriz de cinema de Hollywood. Surge o desenho, feito pela mãe, de um rosto triste e envelhecido. Seu sonho se desfaz e em seu lugar vem um casamento apaixonado, não com o ator americano de sua fantasia, mas com o militante contra a ditadura. Advém daí a clandestinidade e a filha Elena.

 

Treze anos depois, nasce Petra, pequeno encantamento para Elena. Vêm os vídeos que ela mesma faz com a irmã, com a câmera que ganhou de presente. O cinema aí aparece pela primeira vez, Elena é a atriz. Aos vinte anos, no início do ano de 1990, após algum sucesso no teatro em São Paulo, Elena parte para Nova York em busca de sua arte: cinema, teatro, canto lírico... Mas logo retorna ao Brasil entristecida. Pouco depois, no mesmo ano, é aceita na New York University (NYU) para cursar teatro. A mãe então decide ir com ela e Petra para apoiá-la e não a deixar só. No dia 1º de dezembro, Elena abandona a vida. Suas palavras proferidas pouco antes de morrer: "sem a minha arte não sou nada".

 

O que aconteceu em tão pouco tempo, em menos de um ano, que fez Elena se perder de sua arte, sentir-se tão só, vazia, e tão desligada do Outro a ponto de passar ao ato? O desejo de sua mãe não comparece e ela parece ter se perdido na sua tristeza. Nada parece sustentar uma transmissão desse desejo de arte para que ali opere um sinthoma. A psiquiatria prescreve lítio e nada tem a fazer. O que fez cair a arte, tão presente para Elena, que ali comparecia como caminho de vida, da alegria de viver e interpretar? – o que aparece nos vídeos de Elena com Petra, ou na densidade dramática com a qual encena, com sua dança, interpretando com sucesso Guimarães Rosa no Grupo de teatro Boi Voador. Elena, melancolizada, lembra a tragédia de Electra num pôster que pendura na parede pouco antes de morrer, cujo desenho se assemelha ao de sua mãe. Petra, menina angustiada, pensa em morrer, mas precisa manter a mãe viva, em quem vê uma impotente e profunda tristeza estampada no rosto. Mais uma vez, a arte não sobrevém e em seu lugar só restaria a morte. Petra, adulta, refaz o caminho da irmã e faz seu trabalho de luto realizando um belíssimo filme. A arte volta a respirar.

 

Ana Cristina Figueiredo

 

O filme de Petra Costa, Elena, nos dá muitos subsídios para pensarmos as diferentes respostas à perda do objeto. Como é uma narrativa feita em três vozes, a de Elena, a de Petra e a da mãe, há liberdade para inferirmos sobre que teria se passado, pelo menos em parte, com estas três mulheres.

 

Identificada com a mãe no ideal da arte, Elena tenta, de todas as maneiras, avançar e realizar o que a mãe deixara cair, quando optou por se casar. Sua exigência superegóica com a realização deste ideal (que denota sua identificação com a mãe), principalmente nos palcos nova-iorquinos, a leva ao pior. Em muito pouco tempo, por não conseguir um lugar ao sol, Elena desiste. Toma muitos medicamentos e morre, melancolicamente identificada com a perda do objeto.

 

Petra quer revisitar a vida da irmã e faz este belo filme, como, a meu ver, um trabalho de luto a ser concluído. Vai de novo aos EUA reencontra e recompõe os passos de Elena, não sem muitas vezes se misturar e se perder nela. Interessante pontuar que a mãe, sempre dolorida transmitindo claramente um estado melancólico, consegue participar do filme/documentário.

 

Trata-se de um filme sobra a perda e, como tal, nele podemos encontrar as várias saídas possíveis apontadas por Freud e Lacan diante da perda do Ideal que recobre o objeto amado, objeto desejado, do qual usufruímos de prazer e gozo.

 

O abandono da arte, promovido pela mãe para se casar, de certa maneira, permeia a vida das duas filhas. É digno de nota que este homem passa ao largo do filme, insinuando sua presença, no âmbito da família também. A própria Petra diz que o pai, diante da morte de Elena, tinha o olhar vago.

 

Elena, como dissemos, sucumbe quando, em pouquíssimo tempo, não resiste às dificuldades encontradas na competitiva Nova York. Petra segue os seus passos, mas atravessa seu luto e produz esta bela obra. A mãe se engaja na obra desta filha como um esforço de poesia para padecer menos das perdas.

 

A imagem final do filme lembra Ofélia de Hamlet, com uma diferença: mãe e filha voltam às margens da vida. Como disse Petra: "as dores viram água e, pouco a pouco, viram memória".

 

Elena não voltou.

 

Sandra Viola

 

EBP-MINAS GERAIS

Diretor de Biblioteca: Laura Rubião

 

Dia 14 de novembro nos reunimos para assistir e debater o filme Elena, de Petra Costa. Contamos com as preciosas contribuições das colegas Lucíola Macêdo e Cristiane Barreto, que trouxeram uma leitura aguda e refinada sobre esse filme tão impactante quanto provocador.

 

Onde só havia melancolia instaura-se, pela via do objeto de arte (o filme), a vertente de um luto possível, nos diz Lucíola, na esteira do que declara a própria Petra, ao dizer que o filme seria o pagamento de um dívida à irmã. "Se um suicídio permanece como uma carta que não chega ao seu destino, Petra escreve a sua carta de amor à irmã que marcou as rotas do seu destino", observa Cristiane.

 

Lá onde prevalecia o empuxo ao abismo do afogamento, há uma saída que permite flutuar (como retrata a cena final do filme). No lugar da perda da identidade, da confusão dos corpos e das vozes – tão bem retratadas no filme pelos jogos de espelhamento e pela superposição ruidosa dos sons –, há uma saída que permite dar voz ao Outro, fazer falar o impossível, escrevendo-se o que não se dá a ler.

 

Tanto Lucíola quanto Cristiane destacam a importância de se tomar o recurso da arte como um modo de tratar o intratável, o denso buraco da morte que atravessa o destino dessas três mulheres incrustadas na clandestinidade. Elena nasce e vive clandestina, mas Petra nasce quando a família sai da clandestinidade, o que, talvez a tenha permitido dar um passo além em relação ao desejo mortífero da mãe melancólica.    O filme surge, como assinala Lucíola, como objeto separa-dor, isolando o objeto voz, materializado no presente dado por Elena a Petra no momento da primeira separação. Um caracol, nos lembra Cristiane, que se interpõe entre as duas. Petra ultrapassa a idade de Elena, pode dançar e cantar, encontrar um tom próprio, tornar-se leitora dos diários da irmã e, finalmente, separar-se do lugar de objeto de uma Outra mulher.

 

Lucíola nos trouxe uma interessante leitura a partir do livro de Jacques Rancière O destino das imagens, que reflete sobre as possibilidades da arte tangenciar o irrepresentável, presentificando algo do real com seus rastros vivos. Esse pulsar é visível nas narrativas de testemunho – ao modo de Primo Levi e Claude Lanzmann – em que não prevalece o tom memorialista da representação, mas uma pura e simples apresentação do real que, no caso de Elena, se deixa costurar nos fios das imagens fragmentárias, nas lacunas entre as letras, na bricolagem de vozes e sombras.

 

Cristiane aponta-nos o modo pelo qual, do trabalho de luto, se faz o corpo e a existência de uma mulher antes atormentada pela sombra d'A mulher, uma sombra que redobra o silêncio do pai. Petra se desloca do lugar imaginário de ser a marionete da irmã para deixar sua assinatura no filme, contar sua história com pedaços de real para escrever o que não cessa de não se escrever e poder, enfim, ... flutuar.

 

"Petra faz bem feito! E chama atenção pela delicadeza de filme que produz. Uma película à sua dor. Ter Petra Costa no caminho da fabricação do cinema brasileiro contemporâneo nos faz flutuar em águas densas, da melhor qualidade. É atriz do que ela mesma dirige rumo a um outro destino: o cinema" – diz Cristiane Barreto.

 

Algumas perguntas animaram nosso debate: contar essa estória colocando aí algo de sua singularidade aponta para uma travessia ou seria este um recurso provisório, pontual? Seria a escrita/arte uma espécie de veneno-remédio, na medida em que inscreve a dor traumática (sempre irremediável) envolvendo-a numa "película" ficcional?                   

 

Laura Rubião

 

EBP-SANTA CATARINA

Secretário de Biblioteca: Laureci Nunes

 

Ocorreu, no dia 03 de setembro de 2013, no Centro Cultural Bradesco em Florianópolis, a exibição do filme Elena, promovida pela EBP-SC – atividade Una das bibliotecas de nossa Escola. Foi uma concorrida sessão de cinema, que deixou muita gente de fora, pois os cinquenta lugares da sala foram  rapidamente ocupados.
A exibição da película foi seguida dos comentários dos convidados: as psicanalistas Soraya Valerim e Jussara Bado, e o mestre em literatura Diego Cervelin. Na sequência, ocorreu amplo e instigante debate, coordenado por Laureci Nunes, psicanalista e Diretora de Biblioteca.


Os espelhismos entre as três mulheres e a forma como cada uma foi atravessada pelo vazio vertiginoso foi o ponto de destaque comum dos três convidados. Soraya Valerim iniciou as considerações apontando que Elena é um documentário que tem a riqueza de ser um filme dentro do filme, com pedaços de memórias, registros, filmagens, escritos. Foi concebido para fazer de Elena a protagonista, no caminho da realização de um sonho, fazer cinema, mas é Petra, irmã e diretora, quem consegue realizá-lo de fato. Considera que Petra se constituiu especularmente através de  Elena, por quem era filmada em muitos momentos de sua infância, e que em Petra o medo do encontro, da fusão, só se desfez muitos anos depois, quando ela ultrapassou a idade da irmã, quando o espelho se quebra. Já sobre Elena, ressalta que ela se alienou na mãe e ali ficou, diante do espelho no qual foi desenhada, não sem angústia. Para contornar o vazio de sentido ante a dor, Elena põe a falar no limite do possível. Conclui que fazer cinema é montagem e corte e é isso que Petra faz: monta para fazer e existir, revivendo Elena para poder enfim dela se separar.


Jussara Bado destaca que o filme começa com Petra contando o sonho no qual ela se confunde com Elena. Lembra que Petra Costa fala desse sonho perturbador numa entrevista realizada em junho de 2009. "Nele – diz Petra – eu não sabia quem morria, se Elena ou eu". No documentário, Petra afirma que sua mãe sempre lhe disse que ela podia morar em qualquer lugar do mundo, menos em Nova York, e que podia escolher qualquer profissão, menos a de atriz. Jussara considera que esse dito da mãe tomou o valor de um oráculo para Petra, algo que que ela jamais esqueceu. Isso determinou seu caminho, seus desvios e percalços, fazendo com que dedicasse sua existência para verificá-lo e torná-lo verdadeiro. Considera  que o filme se desenvolve mostrando esses efeitos surpreendentes e impressionantes da palavra sobre a vida de um sujeito. Lembra que, desde Freud, acreditamos nos efeitos da palavra sobre o corpo, e que a descoberta de Freud se ordena em torno de algo que o sujeito não pode nomear. Elena comia, engordava, mas falava de um vazio que permanecia. Através de palavras e atos, tentava dar conta do que não fazia sentido em sua existência. Elena se depara com o indizível, com o inassimilável pelo significante e desemboca no pior, o suicídio. Já Petra faz do indizível um mistério a ser decifrado. Para a comentadora, "podemos pensar no filme como uma construção, uma trama imaginária e simbólica, tecida como um véu frente ao inominável e ao impossível de suportar do que se revelava como o destino da irmã e que poderia ser o seu. Petra se misturou aí, teceu e desfez nós, até que se separou da irmã e apropriou-se  de um destino próprio e singular".

 

Diego Cervelin iniciou sua reflexão marcando que "nem tudo o que mostramos se diz, de fato, com as palavras. Mas que, nesse hiato de sentido, há algo que fala mesmo sem ser compreendido, há algo que faz ressoar um grito silencioso, mas suficientemente capaz de entrar agudo no ouvido. E dói". Ele se perguntou: "afinal, como alguém pode suportar o horror das letras pretas assepticamente encadeadas sobre o fundo branco ao dizerem – com um prosaísmo cruel e não menos cortante – que um coração pesa... trezentas gramas? Como alguém pode conviver com a batida extinta desse mesmo coração que até pouco tempo havia sido capaz de conduzir a lua em uma dança evanescente pela imensidão do céu"? Desde a literatura Diego trouxe referências para pensar o recurso da autobiografia, citando Paul Man no texto Autobiografia como desfiguração (1984): antes do registro biográfico funcionar como um gênero, ele trata de uma figura de leitura ou de entendimento que se perfaz através de uma estrutura eminentemente especular . Diego acrescenta que "nesse espelhismo das experiências, nesse entrecruzamento das fantasias e nesse embaralhamento dos fantasmas, o que as imagens apresentam e de fato desdobram são as marcas da perda, da falta, da ausência". Por isso usa a referência e Man também para situar que, mais do que a tentativa de conhecimento confiável de si mesmo, o que a autobiografia demonstra é a impossibilidade de fechamento e totalização dos sistemas. Citando uma frase do filme "Elena é feita de pedra e sombra", Diego Cervelin referiu-se ao punctum barthesiano (mencionado por Lacan no Seminário, livro 11), relacionando-o também ao silêncio do desvanecimento da voz e corpo da mãe de Petra, numa fala em que aquela situa sua dor dilacerante. Cervelin foi levado à lembrar-se também de Clarice Lispector em Um sopro de vida: "a invenção do hoje é o [...] único meio de instaurar o futuro" e, também em Água Viva,"o que me sustenta é o 'aquilo' que é um 'it'. Criar de si próprio um ser é muito grave. Estou me criando. E andar na escuridão completa à procura de nós mesmos é o que fazemos. Dói. Mas é dor de parto: nasce uma coisa que é. É-se. É duro como uma pedra seca. Mas o âmago é it mole e vivo, perecível, periclitante" . Para ele o filme tem aspecto dilacerante e delicado.

 

A partir dessas falas, o debate prosseguiu incluindo outras questões: a identificação que unia as três mulheres e o excessivo do gozo feminino, que teve como contraponto a pouca expressividade de figuras masculinas. Também não passou despercebido o fato de que a depressão de Elena se apresenta no momento da separação dos pais, e que o aparecimento daquele americano (seu pai) foi o que conteve a depressão materna. Também houve a pontuação de que Petra se salva quando começa a  procurar a irmã fora dela mesma, sendo essa a marca da efetiva separação, que finaliza um longuíssimo trabalho de luto. Neste ponto foi consenso que esse momento de corte (buscar as pegadas de Elena em Nova York) permitiu a Petra constituir Elena para além do mito. A atuação no teatro foi lembrada como possibilidade de repetição para a elaboração e passagem de fases, pois é uma repetição com diferença. Também o fato de o filme enxertar poesia continuamente, através das imagens, das pequenas frases, da música, num contexto de pura angústia, como uma tentativa de furar o duro (da morte, da dor, do real) com o delicado. Destacou-se também a forma não moralista como o roteiro lida com a verdade e o ficcional, mostrando sua tênue passagem, a reversibilidade entre um e outro.

 

Por último, não passou despercebido a sociedade das imagens, o mundo visto através das telas, tanto por Elena, como pela sociedade americana, que há anos já filmava tudo, assim como o ideal do cinema americano, hollywoodiano, para as três mulheres, em seus sonhos de serem atrizes.

 

Laureci Nunes e Monique Bez

 

EBP-PERNAMBUCO

Secretário de Biblioteca: Carolina Queiróz

 

Um enunciado e dois destinos: um comentário sobre o filme Elena

 

Sala lotada e entre pipocas, doces e amendoins encontravam-se os olhares curiosos e ansiosos da plateia, provocados pelo convite feito à cidade, através de uma campanha de divulgação, interessante e delicada, da diretoria da Biblioteca Maria do Carmo Vieira. Entre o público, encontrava-se Marcos Creder, psiquiatra e convidado para debater o filme Elena.

 

O filme de Petra Costa apresenta como personagem central, Elena, sua irmã mais velha com a qual se constituiu especularmente. Petra, entre lembranças, imagens antigas e atuais, tece um documentário vibrante e fino de sua família, de sua origem.

 

"A dor que vira água e vira memória". Com tais palavras de Petra, podemos pensar que ela constrói o filme para que o vivido possa ser transformado em memória e vida. A última cena do filme, Petra e sua mãe estão presentes como corpos separados que, na água, tocam-se, talvez, afetadas por um mesmo real, desfrutando do movimento das águas e da vida.

 

Dessa forma, Petra organiza a narrativa que envolve a viagem de Elena, e a sua para Nova York, ambas comandadas pelo mesmo enunciado: ser atriz de cinema. Elena busca deixar para trás, nessa viagem, a infância passada na clandestinidade durante a ditadura militar e uma adolescência vivida entre peças de teatro e filmes caseiros. Busca deixar, ainda, Petra, com 7 anos. Duas décadas mais tarde, é a vez de Petra, que também se torna atriz e embarca para Nova York em busca de Elena, em busca dela mesma.

 

Marcos Creder elabora seu comentário do filme a partir do ponto de vista psiquiátrico, psíquico, estético e trágico. Do ponto de vista psiquiátrico, aborda a questão do suicídio, do uso de medicação e da frequência com que ele é observado no início do tratamento químico da depressão. Do psíquico, Marcos aborda a partir de Freud, colocando que "do ponto de vista metapsicológico, podemos perguntar quem é o personagem principal do filme?" Do estético, ressalta o lado artístico das belas cenas que exploram o jogo de cor e brilho. E, por fim, lembra que Aristóteles, quando pensou a tragédia, observou nela o fenômeno da catarse, desencadeador de terror e de compaixão.

 

Heloisa Caldas, em seu texto "Contribuição para o banco de dados sobre o seminário V, Formações do Inconsciente", assinala que na tragédia, diferentemente da comédia, encontramos a representação do homem como objeto do seu destino. Com isso ela nos lembra que a submissão do sujeito ao significante não lhe assegura uma identificação, mas o empurra sempre numa dada direção a persegui-la.

 

Ser atriz de cinema: podemos supor que este é um enunciado que comanda tanto  Petra como Elena, com diferentes consequências. Elena naufraga, afoga-se, aprisionada na identificação a desejo do Outro. Por outro lado, Petra sobrevive e, apesar de capturada pelo significante que fixou um gozo pulsional no real do seu corpo, conseguiu  separar-se e romper com a série familiar que determinava fracasso e morte, traçando seu próprio destino.
                                                                                                      Anamaria Vasconcelos

 

DELEGAÇÃO RIO GRANDE DO NORTE

Secretário de Biblioteca: Cláudia Formiga

 

Da queda, um passo de dança

 

Como parte da atividade Una das Bibliotecas da EBP, apresentamos em agosto o filme Elena na sessão de Cinema e Psicanálise, numa parceria da Delegação RN com a Aliança Francesa de Natal.

 

Duas semanas antes de nossa apresentação, o filme havia chegado aos cinemas de nossa cidade. Apesar disso, naquela noite tivemos uma das nossas mais concorridas sessões do ano. Curiosos vieram se dizendo atraídos com o nosso cartaz. Outros, tendo já assistido o filme, se disseram interessados em discuti-lo à luz da psicanálise.

 

O comentário esteve a cargo da colega Ruth Jeunon, que também conduziu o debate, uma animada conversa que se estendeu para além do horário previsto e que contou com a participação de muitos dos presentes. A sua abordagem do filme aludiu aos conceitos de alienação e separação e discutiu sobre a importância da fala e da linguagem na determinação de um destino. Na discussão, luto e melancolia apareceram como posições assumidas por Petra e Elena, que ensejaram o tema da morte e do suicídio. Em um outro momento da conversa, o caráter trágico do desejo, pelo qual somos responsáveis, compareceu como contraponto à tragédia, na qual o sujeito não se responsabiliza por seu destino, o que rendeu mais uma boa discussão. 

 

No filme, um documentário em tom extremamente confessional, a diretora Petra Costa, que também é atriz e personagem, nos convida a acompanhá-la no resgate que faz de sua memória da relação vivida com a irmã, Elena, que se suicidou quando ela tinha 7 anos de idade.

 

Já na cena inicial, vemos Petra completamente identificada com Elena, posição em que parece ter se fixado durante vários anos após essa perda. O sonho com que Petra inicia a sua narrativa traz, ao mesmo tempo, ela própria e Elena, a irmã morta, indiferenciadas e unidas em um único corpo: "sonhei com você essa noite [...] olho de novo e vejo que sou eu [...]. Eu mexo nos fios, buscando tomar um choque e caio [...]. E morro."

 

A partir dos fragmentos de memória e com a ajuda dos diários, filmes caseiros, fotos, recortes de jornal e cartas gravadas em fita cassete, Petra constrói o documentário e nos apresenta a sua irmã, Elena. Pela lente de Petra, conhecemos Elena, uma menina que desde muito cedo desejou ser atriz de cinema, incentivada pela mãe cujo sonho era "ser atriz em Hollywood e beijar Frank Sinatra", um sonho com o qual, nas palavras de Petra, "tentara escapar de um mundo onde se sentia incompreendida". Em 1980, quando Petra tinha 7 anos de idade, Elena decide viver em Nova York a fim de batalhar por esse sonho. Em seguida, frente à alguns fracassos, Elena sucumbe ao peso de sua existência e comete suicídio.

 

Vinte anos depois, vemos o trabalho de Petra de buscar um lugar próprio a partir da ausência que a habitou desde essa perda, aparentemente vivida como verdadeira queda no vazio. Descolada do dito materno que a proibia de ir a Nova York e também de ser atriz, Petra, então atriz e diretora, escreve a própria história, ao mesmo tempo em que busca re-significar a memória da irmã. De objeto de amor e identificação ("a concha para escutar o mundo"), Elena passa a ocupar o lugar de uma saudade, solução encontrada por Petra para o que chamou de sua dor mais cruel.

 

Separar-se da irmã com quem permaneceu tanto tempo fusionada parece ter sido a operação que permitiu a Petra desenhar pra si mesma um corpo, e essa é uma parte importante do trabalho psíquico que, ao seu modo, ela conclui ao fazer esse filme.

 

Elena é também um filme delicado, que encanta pela beleza de suas imagens. E a escolha de Petra pela delicadeza desse filme como forma de trilhar sua difícil travessia a aproxima da proeza do poeta em "fazer da interrupção um novo caminho; da queda, um passo de dança".

 

Cláudia Formiga

 

 

DELEGAÇÃO GERAL MARANHÃO

Secretário de Biblioteca: Anícia Ewerton

 

Este documentário de Petra Costa é a história de três mulheres que falam das suas angústias, vividas no período da ditadura militar, que teve uma geração  nascida na clandestinidade, e vividas após este período, de abertura e de grandes expectativas para aqueles que batalhavam por seus sonhos, a exemplo de Elena. As ponderações, parciais, aqui apresentadas são feitas tomando por base as falas dessas mulheres, que fizeram parte do documentário.

 

Petra Costa teve a ideia de fazer um filme sobre Elena, segundo sua entrevista postada na internet, quando tinha 17 anos. No entanto, somente 10 anos depois, decide fazer este documentário, numa tentativa de dar um sentido a sua inefável dor, através do resgate das anotações, gravações deixadas por Elena e de depoimentos de pessoas que conviveram com sua irmã, inclusive o da sua própria mãe. 

 

O documentário nos traz elementos que permitem a articulação de alguns conceitos da psicanálise. Primeiramente, o que me chama atenção é como Petra Costa  parte de um sonho para fazer este documentário. Parte justamente da interpretação dada ao próprio sonho, das associações que consegue fazer. Após, o sonho mergulha nos filmes caseiros, anotações, deixados pela irmã e produz o documentário. O sonho também motivou Freud a escrever o célebre livro, em 1900, Interpretação dos sonhos, com o qual apresenta à sociedade de sua época uma maneira inédita de interpretar os sonhos que não perpassa  pela leitura de símbolos, mas pela associação livre, o que, de certo modo, Petra faz com seu sonho, pivô deste documentário.

 

Nas falas das três mulheres encontramos um ponto de identificação entre elas, isto é, a identificação pelo ideal da arte. Elena fez uma tentativa de sustentar esse ideal deixado pela mãe, que optou pelo casamento, porém, sua tentativa fracassa, levando-a a uma angústia mortífera, que ela não conseguiu nomear. O sentimento de angústia é vivido pelas três mulheres, cada qual a seu modo.

 

Mas, o que é a angústia para a psicanálise? No Seminário X, Lacan vai dizer que a angústia apresenta-se quando falta a falta. Dizendo de outro modo, quando falta o que nos movimenta, o que nos faz ter interesse por determinadas coisas, a falta presente em cada um de nós. É a falta que faz nosso desejo deslizar metonimicamente e, quanto esta falta, estamos na dimensão da angústia, onde não encontramos mais um sentido para dar sentido à nossa vida, e foi neste ponto que Elena se encontrou. Nada fazia brilhar sua vida, encontrando como saída o suicídio, uma passagem a ato. Petra e sua mãe, apesar, de suas angústias conseguem, cada uma a sua maneira, uma a uma, encontrar um sentido para continuarem suas vidas.

 

Por fim, este documentário também me fez pensar na diferença de uma passagem ao ato para o acting out. Da passagem ao ato feito por Elena e dos acting out da Petra. A passagem ao ato é uma saída de cena, sem deixar lugar para a interpretação, ocorre uma ruptura do quadro da fantasia, enquanto a acting out implica uma entrada em cena, um apelo ao Outro, convocando uma interpretação.   

 

Anícia Ewerton

 

Elena, um filme que, como uma poesia, evoca sentimentos na parceria do autor com o espectador. Petra Costa, é a diretora, co-roteirista e personagem dessa obra de arte autobiográfica, daí o realismo que experimentamos ao assisti-lo. Há uma intimidade maior, já que mais do que a marca de sua autoria é a sua própria marca exposta que nos envolve nos seus sentimentos de perda, solidão, medo e angústia, tão comuns aos seres falantes, tão dela e tão nossos.

 

Elena, irmã mais velha 13 anos que Petra, nasce na clandestinidade vivida por seus pais no tempo da ditadura militar. Seus pais militantes políticos iam para a guerrilha no Araguaia, onde quase todos que foram morreram. A mãe de Petra estava grávida, por isso eles não foram ao encontro.  Todos enredados em um possível trágico destino. No filme, Petra diz emocionada a Elena: "foi você que nos salvou". Crescendo Elena então na clandestinidade, viveu seus primeiros anos sem poder revelar sua vida, nem onde morava. Petra faz então a seguinte colocação: "como será que esse tempo ficou na sua memória, no seu corpo?". As questões, suposições, devaneios, pairam onde Petra encontra a falta. O mistério, que não tem resposta, traduz-se no filme nesse monólogo/diálogo comovente e em imagens oníricas, em um presente e um passado atemporais na memória inconsolável de Petra, ou seja, a dor em sua emergência sem tempo.

 

Petra nasce nos anos 80 na abertura política. Numa imagem de vídeo lá está ela, como um bebê no colo da sua adolescente irmã Elena. A diferença de idade torna essa irmã mais velha quase outra mãe, a que cuida, a que a filma, que lhe fala de teatro e de representações, apresentando-lhe desde cedo o mundo da arte, legado que Petra saberá fazer valer. Arte que a mãe já tinha dentro de si, no desejo de ser artista. As três mulheres, a mãe e as duas filhas, em tempos distintos, confluem no mesmo desejo de ser artista. É o que me ocorre quando vejo as belas imagens delas boiando nas águas. Mulheres em confluência entregues à correnteza, aos seus gozos, deixando-se levarem, sem um ponto de basta, sem onde ancorar.

 

Em uma entrevista à diretora Petra, ela, porém, explica que tentou traduzir ali em imagens "a crise existencial em jovens mulheres no período de transição da adolescência para a fase adulta, essa coisa de se afogar nos próprios sentimentos, no excesso de sensações e desejos e ainda não ter instrumentos suficientes para lidar com tudo". Também a personagem de Hamlet, Ofélia, é evocada, quem também experimenta a dor do abandono, da solidão e sucumbe à tristeza e, esvaziada, afoga-se nas águas. Elena tinha o amor da mãe e irmã. A mãe tenta animá-la, mostra a sua dor em vê-la entregue ao sofrimento, lhe faz companhia com a outra filha em terra estrangeira, mas nada adianta. Há também um amigo que a procura antes da sua passagem ao ato, mas ela rejeita qualquer apelo.

 

Jacques-Alain Miller, em "Introdução à leitura do Seminário de Angústia de Jacques Lacan" faz a seguinte colocação: "Há, na passagem ao ato, um não querer saber mais nada. Sai-se do logro da cena para a certeza encontrada em uma identificação curto-circuito com o objeto a, que Lacan chama, inclusive, identificação absoluta com o objeto a fora da cena". Nessa rejeição da cena e de qualquer apelo ao Outro, encontra-se o sujeito isolado na sua dor, a qual somente ele próprio tem acesso. Suas explicações se resumem na incompreensível frase: "não quero mais viver. Resta, aos que ficam, as perguntas, as lembranças e o que fazer com a angústia da perda traumática.

 

Petra faz do impossível do saber seu sintoma. Apodera-se deste e faz arte. Numa fase de decisões, na entrada da vida adulta, lendo o diário da irmã, vendo os vídeos caseiros, lendo os recortes de jornais e papéis, reencontra-a. Vê-se identificada à irmã. Entre admiração e medo, partilhado com a mãe, surge a pergunta: seguirá o destino da irmã? Mas o que a angustia também é causa. Ela vai em frente e reconstrói a história de Elena pelas lentes da arte, simbolizando vida, morte e toda a teia de afetos daí oriundos. Através da arte, sublima a dor, supera seu medo e o da família, de que se repita outro destino funesto. Sente-se livre, vai para Nova York e, como cineasta e atriz, triunfa fazendo esse belo filme.  Esse é o saber fazer do artista.

 

Atravessados na nossa frágil existência pelas contingências por vezes trágicas da vida, hesitamos frente ao real. Abre-se o buraco negro, o inesperado, o sem lei. Como fazer com a dor?

 

O sujeito, quando confrontado com o seu destino, encontra-se diante do desafio de se reinventar a partir de subjetividade para lograr uma saída singular – o que poderá ser, por exemplo, construído numa análise ou elaborado através da sublimação na arte.

 

Silvana Sombra

 

DELEGAÇÃO ESPÍRITO SANTO

Secretário de Biblioteca: Tânia Prates

Memória inconsolável

 

As Elenas foram marcadas pela clandestinidade, pelo desconsolo e frustração. Elena não suporta seu vazio, embora tente em vão suprimi-lo. Ela é tomada pela melancolia, pela dor de existir, já presente em sua mãe, expressa desde os treze anos.


Primeiro há uma clandestinidade, depois uma superexposição. Seria para superar uma incômoda dificuldade?
Há uma exposição nua do real, como aquilo que não comparece no simbólico.


Petra, fazendo seu luto, realizou o desejo da mãe e de Elena, criando um belíssimo filme. O imperativo materno pode ser lido no comando: "você pode ser tudo, menos morar em Nova York e ser atriz".       
Assim, o filme é uma tentativa de resgate do sentido em vida e da vida por um sujeito marcado pela morte – "feito de petra e de sombras, Elena".


Tânia Mara Alves Prates

 

DELEGAÇÃO GERAL MATO GROSSO/MATO GROSSO DO SUL
Secretário de Biblioteca: Aparecida Andrade

 

Numa quinta feira do mês de outubro, dia 17, sob uma expectativa latente, assistimos o filme Elena, produzido por Petra Costa que, além de diretora, foi também produtora e atriz.


Trata-se de um documentário de 80 minutos, no qual podemos ver arquivos pessoais, depoimentos e imagens. Nele observamos a elaboração de um luto vivido por Petra Costa e uma homenagem feita à sua irmã, Elena, 13 anos mais velha.


Trata das memórias com um realismo do cotidiano, com as alegrias de um tempo de infância e da adolescência, vividas entre peças de teatro e filmes caseiros. Petra, sua irmã, revive tais memórias, seu amor incondicional por Elena e os primeiros desejos que no futuro iriam se concretizar.


O documentário, artístico, emociona, mobiliza angústia e tristeza, mas, ao mesmo tempo, apazigua a alma.
"A arte para mim é tudo, sem a arte eu prefiro morrer".


Assim era Elena, uma  apaixonada pelo teatro. A arte que conduzia sua vida era sua alegria, o motivo de seus sonhos. Mas, ao vê-los tão distante e esmagados por uma autocrítica exagerada – mesmo sendo vista como uma moça cheia de talentos –, ela se perdeu, jogando-se para fora deste mundo.


"Me sinto escura, no escuro. Meu coração está tão triste que eu me sinto no direito de não perambular mais por aí com esse corpo que ocupa espaço e esmaga mais o que eu tenho de tão… tão frágil."
O clima pesado, com a sensação de perda iminente, se fortalece ainda mais quando entra em cena a mãe de Petra e Elena. Com os olhos fundos de tristeza e um inquietante desequilíbrio, com ela chegamos ao ápice da trama. Nós não só descobrimos o que aconteceu com Elena, mas também o fato de que tal documentário é sobre Elena, mas sobretudo sobre a própria Petra, que teme seguir os mesmos passos de sua irmã.


            "E, pouco a pouco, as dores viram água, viram memória. As memórias vão com o tempo, se desfazem, mas algumas não encontram consolo, só algum alívio nas pequenas brechas da poesia. Você é a minha memória inconsolável feito de pedra e de sombra e é dela que tudo nasce".


Assim, identificada com sua irmã, Petra, após o duro trabalho de luto e de separação, pode enfim tecer o seu próprio caminho.


Aparecida Andrade de Lima

 

 

Elena (Brasil, 2012). Documentário dirigido por Petra Costa, com roteiro de Carolina Ziskind e Petra Costa. Produzido por Daniela Santos e Julia Bock. Fotografia de Janice d'Avila, Miguel Vassy, Will Etchebehere.

Lacan, Jacques. "Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein". In Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, pp. 198-205.

Lacan, Jacques. O seminário, livro VII: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.

Elena (Brasil, 2012).

Publicado em Modern Language Notes, n. 94 (1979) e em The rhetoric of romanticism. Nova York: Columbia University Press, 1984, pp. 67-81. Cf. Man, Paul de. "Autobiografia como des-figuração". Tradução de Joca Wolff.  Em: Sopro. Panfleto político-cultural, n. 71, maio de 2012, Ilha de Santa Catarina, p. 04. Disponível em: http://www.culturaebarbarie.org/sopro/n71pdf.html.

Cf. Barthes, Roland. A câmara clara. Tradução de Júlio C. Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 46: "Em latim existe uma palavra para designar essa ferida, essa picada, essa marca feita por um instrumento pontudo; essa palavra me serviria em especial na medida em que remete à ideia de pontuação [...] pois o puntum é também picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte – e também lance de dados. O punctum [...] é esse acaso que [...] me punge".

Lispector, Clarice. Um sopro de vida (Pulsações). Rio de Janeiro: Rocco, 1999, pág. 13.

Lispector, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, pág. 12.

 

COMISSÃO EDITORIAL

 

Redação: Maria Josefina Sota Fuentes e Tânia Abreu
Equipe: Mirta Zbrun, Fernanda Otoni, Ana Martha Maia, Laureci Nunes e Bernadette Pitteri
Coolaboradores: Fernando Coutinho (RJ), Laura Rubião (MG), Nilton Cerqueira (BA), Cynthia Freitas (SP), Carolina Queiróz (PE), Laureci Nunes (SC), Célia Winter (PR), Anícia Ewerton (MA), Aparecida Andrade de Lima (MG/MS), Ordália Alves Junqueira (GO/DF), Cristina Maia (PA), Tânia Prates (ES) e Cláudia Formiga (RN).
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