Notas iniciais para um Aggiornamento democrático na EBP

Lucíola Freitas de Macêdo

 

Temos no âmbito do debate em curso sobre a democracia nas Escolas da AMP alguns planos em jogo, que se articulam de várias maneiras: 1) Democracia e política em geral; 2) Democracia e psicanálise; 3) Aggiornamento democrático das Escolas da AMP. Valeria localizar tanto as especificidades das diferentes esferas do debate, como também seus pontos de torção, considerando a hipótese de que a realidade política de cada país – e notadamente os recentes acontecimentos no campo da política na Venezuela, Brasil, Argentina, França e Espanha, só para citar alguns exemplos atuais – tem efeitos sobre a própria experiência de Escola.

 

Democracia e política em geral

 

As coordenadas que me parecem cruciais situar, concernem às especificidades do debate sobre a democracia no âmbito da instituição analítica, por um lado; e aquelas que dizem respeito à democracia como regime político e forma de governo, por outro. Em relação à primeira, teremos a chance de elucidar as suas especificidades por ocasião da conversação “O aggiornamento democrático na EBP”. Quanto à última, li recentemente algumas considerações feitas por Daniel Innerarity em A política em tempos de indignação (2017), que me pareceram bastante esclarecedoras, e mesmo, surpreendentes, pois jamais havia pensado os impasses da democracia por esse prisma. O capítulo “Democracia sem política” me chamou especial atenção. Ele interroga se o que temos hoje nas democracias ocidentais não seria da ordem de “uma democracia aberta e uma política fraca” (2017, p.173). Para ele o espaço democrático – no qual em princípio qualquer pessoa pode fazer valer a sua opinião, possibilitando diferentes formas de pressão e de expressão através dos espaços abertos de influência e mobilização, movimentos de protesto e manifestações de todo o tipo – tem funcionado relativamente bem. O que não está funcionando tão bem é a política. O resultado tácito deste estado de coisas são as democracias despolitizadas (p.174). Para ele as democracias representativas padecem hoje da “hybris da cidadania”(p.187), ou seja, da ambivalência de uma sociedade cujas demandas e exigências são pouco articuladas politicamente. Elas não vêm acompanhadas de um horizonte de responsabilidade por parte de quem as reivindica, gerando um paradoxo: as “ameaças democráticas à democracia” (p.187); ou dizendo de outro modo, engendrando uma espécie de autoritarismo democrático. Será que podemos afirmar, sem medo de errar, em tempos de democracias de massas e de populismos tanto à direita quanto à esquerda, que a democracia se constitua como o reverso, e mesmo, como o extremo oposto, dos regimes totalitários? Questão que por si só justificaria interrogar as mutações da democracia face a derrisão do simbólico e o declínio das sociedades patriarcais.

 

Democracia e Escola

 

Em recente pronunciamento o presidente da AMP, Miquel Bassols, esclarece que o que está no horizonte do aggiornamento democrático das Escolas não é mera questão de atualização dos estatutos a fim de facilitar uma maior participação das maiorias ou das minorias na vida das Escolas da AMP, mas primordialmente a colocação em ato da conversação analítica sobre os impasses da civilização e suas incidências sobre a experiência de Escola como dispositivo fundamental daquilo que veio a nomear  por “democracia analítica”: esta se funda à medida em que cada um tome para si o seu lugar de sujeito; que se identifique não com o que do grupo é idêntico a si mesmo, mas com aquilo que descompleta o grupo, com aquilo do grupo que não faz grupo. Assim, a conversação analítica será um dispositivo capaz de urdir o Um que causa o desejo. Este Um que descompleta conflui com uma Escola que se quer outra para si mesma. Esta orientação vai na direção da proposição de Jacques-Alain Miller em “Conferência de Madrid” de que “para atuar em política confiar na autonomia do pensamento é tão necessário quanto rebaixar o nível das identificações”. Somente assim haveria lugar para a enunciação, para a fecunda multiplicidade do dizer, advertidos de que não há Outro do Outro; para o que advém da solidão de cada qual em sua relação com a causa analítica” e para isso que vocifera do lugar de mais Ninguém” (MILLER, 2015, p.332); ou seja, para isto cujo laço se tece em torno de um vazio. Estes são os antídotos dos quais dispomos frente ao Um que segrega, que se nutre com a massificação das reações, com os encantamentos com o Mestre e seu discurso, e com a “defesa mutualista contra a surpresa”1.

 

“Fazer a psicanálise existir no campo político”2 e o desejo do analista


Para fazer a psicanálise existir no campo político, caberá rebaixar o campo das identificações; para rebaixar o campo das identificações, uma análise; para uma análise, um analisante, um analista e o desejo do analista; para o desejo do analista, uma Escola. Em posição de extimidade, ou como novo elo desse enlace, temos Zadig e seus diferentes nós, pelos quatro cantos do mundo. Zadig “não se confunde com a AMP nem com suas Escolas”, mas enquanto “extensão no nível da opinião” (MILLER, 2017) poderá ler-se como “uma extensão de um mesmo espaço, o da experiência analítica, o da experiência de Escola como sujeito, em suas consequências políticas levadas ao grupo social” (BASSOLS, 2017). Ao nível das Escolas temos a ação do sujeito da experiência sobre o grupo analítico. A aposta lançada por Jacques-Alain Miller com Zadig considera a possibilidade de estender este princípio ao grupo social e à política em geral. Para levar a cabo esta operação “é preciso uma Escola sólida e claramente ancorada nos princípios analíticos” (BASSOLS, 2017). Eis aí o que enlaça a Escola, a experiência analítica e seu coração pulsante, o desejo do analista, à política, com Zadig.

 

Dito isto, passemos ao exercício de pensar possíveis enlaces entre o desejo do analista e o desejo de democracia, tendo como ponto de partida a conhecida passagem do Seminário 11, os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: “O desejo do analista não é um desejo puro. É um desejo de obter a diferença absoluta, aquela que intervém quando, confrontado com o significante primordial, o sujeito vem, pela primeira vez, à posição de se assujeitar a ele” (LACAN, 1993, p.260).

 

Vejamos: uma análise enseja, quanto ao sujeito, o assentimento ao significante primordial ao qual se encontra assujeitado e do qual extrai uma satisfação paradoxal, atribuída no mais das vezes, quando se desconhece ou denega tal lógica, ao Outro mau que supostamente gozaria de sua sujeição. Desta operação extrai-se não o ideal sustentado por uma identificação grupal, mas uma “posição-limite”. Através desta operação, o peso da sujeição não mais recairia sobre o Outro, que sob os auspícios da vontade de gozo de um chefe ou grupo, exigiriam incondicionalmente e sem descanso o seu sacrifício.

 

Na contra-mão desta orientação temos atualmente um incremento de múltiplas ações nos campos político e social que se articulam a partir de bandeiras higienistas, por um lado; e dos discursos identitários, por outro. Ainda que parecem diametralmente opostas, tais tendências geram, paradoxalmente, o mesmo efeito: a segregação. No caso específico das políticas identitárias, pesem as suas boas intenções, tem-se uma solução fundada no ideal democrático enquanto garantia de uma igualdade sem furos e de uma aspiração ao Um por meio da realização, no social, do que é idêntico a si mesmo, o que no mais das vezes forja uma inclusão ao preço do ódio e da segregação.

 

A máxima separação entre I e a, motor do desejo do analista, favoreceria, e mesmo permitiria, fazer vibrar um acorde próprio, diferente dos tantos acordes que fazem barulho hoje, no campo da política? Teria esta operação consequências sobre a lógica segregacionista que tem dado o tom das discussões e embates políticos, na atualidade? Esta é a nossa aposta, os dados estão lançados.

 

 

Referências Bibliográficas:
- BASSOLS, M. Aggiornamento democrático. In: Lacan Quotidien, n. 724.
_______.  Campo Freudiano Ano Zero en la ELP. In: Lacan Quotidien, n.749.
 - INNERARITY, D. A política em tempos de indignação. Rio de Janeiro: LeYa, 2017.
- LACAN, J. Seminário 11, os quatros conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de janeiro: JZE, 2003.
- MILLER, J-A. Conferencia de Madrid. In: Lacan Quotidien, n.700.
_____. Campo Freudiano, Ano Zero. In: Lacan Quotidien, n.718.
_____. Todo mundo es loco. Buenos Aires: Paidós, 2015. BH, 22 de dezembro de 2017.



1 Cf. Pronunciamento de Jaques-Alain Miller, Transcrição da Assembleia de Geral de Membros da EBP, Rio de Janeiro, abril de 2000 (Inédito).

2Cf. Proposição de J-A. Miller em “Conferência de Madrid”.

 

 

 

 

 

Conselho Deliberativo da Escola Brasileira de Psicanálise

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