21 de novembro 2013 - Hotel Panamericano - Buenos Aires - Calle Carlos Pellegrini 551

 

Boletim haun #013

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Editorial

Glacy Gonzales Gorski, Maria Josefina Sota Fuentes e Cleide Pereira Monteiro

 

Aún el amor ...

Último boletim de uma série que se iniciou provocada pela sonoridade do haun, e foi tomando corpo em treze números; os colegas foram convidados para proceder, um a um, à elaboração coletiva em consonância com um desejo de investigar o tema do Há-um, sem abrir mão do rigor conceitual, compartilhado por muitos, desde que aliado à questão de cada um, sempre singular.

 

Se é com o amor que tudo se inicia na psicanálise, é também com ele que se conclui uma experiência analítica. Nada melhor, então, do que dedicar este derradeiro número ao amor, especificamente àquele que nos convida a pensar o texto de Thérèse Petitpierre, no qual se esclarece que não é a partir da perspectiva fenomenológica que o amor interessa à psicanálise.

 

Em suas Notas de leitura, como assim nomeia, Petitpierre lança mão de três referências de escritores dadas por Lacan no capítulo XII do Seminário 19, O saber e a verdade: Stendhal, Baudelaire e Honoré d'Urfé. Tais autores, indo além de uma suposta fenomenologia do amor, muito poderiam interessar ao psicanalista, pois, ao contrário de tantos outros, eles não deixariam de fora um aspecto fundamental: a estranheza. Em suas três notas, Petitpierre privilegia uma obra de cada um dos autores citados por Lacan.

 

Na primeira nota, dedicada a Stendhal, ela recolhe a obra Do amor, a qual teria sido escrita, talvez, como resposta do autor ao enigma do amor, não correspondido, por Métilde, levando-o a confrontar-se com a impotência. Dessa obra, Petitpierre aborda a conhecida "metáfora da cristalização", na qual se verifica uma operação de transfiguração do objeto amado que se revela possuidor de "novas perfeições".

 

A seguir a autora realiza uma leitura interessante das proposições de Baudelaire, as quais construídas em seu texto Escolha de máximas consoladoras sobre o amor. Se "o amor é para todos", é preciso, no entanto, escolher: o amor: calmante ou estimulante? Petitpierre interroga sobre a "periculosidade do amor", sobre como reconhecer a mulher que convém, lembrando que não se trata de "simpatias naturais", mas "de uma relação ao objeto de desejo e/ou da pulsão". Vale conferir a sugestão da autora de que é preciso considerar que, para Baudelaire, ao "todos" de partida responde "toda mulher sendo um pedaço da mulher essencial".

 

E, por último, Petitpierre traz para o debate Honoré d'Urfé, um autor que trilha na direção oposta àquela do romance do século XIX, do qual fazem parte Stendhal e Baudelaire. Da obra, L'Astrée, não concluída, não se pode fazer uma fenomenologia, pois, como diz Lacan, "nada sentimos além de tedio". Petitpierre recupera, nesta nota, a história de amor entre a heroína Astrée e o personagem Céladon, lembrando que tal obra faz ressonância com o que Jacques-Alain Miller nos traz em seu magnífico texto "Os labirintos do amor", publicado na  Correio, nª 56. Confiram como Petitpierre alinha o amor à invenção sinthomática a partir do que recolhe em Astreia.

 

Três notas sobre o amor, brechas que nos convidam à investigação do que se extrair das questões do amor abordado no que ele tem de estranheza, isto é, um amor que rejeita o dois da relação sexual. Quais são as consequências para o discurso analítico quando o amor é tomado na dimensão do Um sozinho cuja significação está fora da semântica e da articulação significante? Como, a partir dessa nova perspectiva – em que amor e o gozo não se contrapõem –, pensar o amor de transferência? Questões que nos instigam às novas pesquisas e que já colocam em marcha o tema do próximo Encontro Nacional de Cartéis, que versará sobre o amor, e acontecerá no contexto do XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, a ser realizado em novembro de 2014, na cidade de Belo Horizonte.

 

Este número também publica a contribuição do Bibliô - Referência, que traz as referências do último capítulo, o XVI, intitulado, por Jacques-Aalin Miller, de Os corpos aprisionados pelo discurso. Agradecemos a Mirta Zbrun e sua equipe por esse minucioso trabalho de pesquisa que se constituiu, ao longo deste percurso, uma ferramenta indispensável à leitura do Seminário 19.

 

Agradecemos, ainda, aos colegas que contribuíram com suas produções para enriquecer o nosso debate, que continuará com entusiasmo na tarde do próximo dia 21 no salão Patagônia do Panamericano por ocasião da Buenos Aires Lacaniana.

 

Hasta pronto!

 

 

Notas de leitura:Três referências de Lacan no capítulo XII do Seminário ... ou pior

Stendhal, Do amor,Charles Baudelaire, Escolha de Máximas consoladoras sobre o amor, Honoré d'Urfé, Astreia.

Thérèse Petitpierre

Poderá causar surpresa que eu tenha escolhido trabalhar com essas referências, que aparecem em um contexto em que Lacan as situa do lado do que poderia ser uma fenomenologia, cujo objeto seria o amor e que ele indica que "essa fenomenologia, nos é muito difícil fazê-la e, ao retomar o que constituiria o seu inventário, não podemos deduzir outra coisa senão a miséria daquilo em que ela se apoiou" 1. Ele observa que há uma profusão na expressão literária que se emitiu dessa fenomenologia do amor, mas que ele é "tão curta que nem sequer possa evidenciar a única coisa que nos interessaria, a saber, a estranheza" 2. À parte, alguns autores como Stendhal e Baudelaire no século XIX. Quanto à Astreia, inscreve-se em um longo período do qual Lacan diz que "é o oposto" 3.

 

Esclareço também que, inicialmente, eu pretendera propor notas de leitura, apenas da obra de Stendhal citada por Lacan. Mas, mal começada minha leitura, descobri que dois autores me haviam precedido. Philippe Sollers, que, com seu romance Trésor d'amour4 , dedica-se a uma exegese da obra de Stendhal e, principalmente, seu De l'amour5 , mesclado a uma história de amor contemporânea. Aliás, Lilia Mahjoub seguiu o caminho Sollers-Stendhal, em uma parte do artigo que ela intitulou "L'amour, encore"6. Eu me disse, então, que os analistas em formação em nosso campo continuam leitores de Sollers e, evidentemente, de Lilia Mahjoub, iriam, talvez, se cansar. Por isso, decidi lançar mão, igualmente, das outras duas referências de Lacan, Baudelaire e Honoré d'Urfé.

 

Trata-se, portanto, de notas e, absolutamente não de um trabalho de exegese.

 

1. Stendhal, Do amor

"O amor sempre foi para mim o maior dos negócios, ou, aliás, o único" 7. Leremos interessados a passagem do texto de Lilia Mahjoub, a respeito do túmulo de Stendhal, da inscrição que ele desejava que se gravasse sobre a lápide e o deslocamento operado sobre o lugar da palavra "amo", em relação à sequência ("Visse, scrivo, amo" versus 'visse, amo, scrive, tradução "viveu, escreveu, amou", "viveu, amou, escreveu").

 

Se Stendhal propõe inicialmente quatro tipos de amor, é seguido por uma metáfora a partir da qual ele define o amor, a conhecidíssima metáfora da cristalização. Encontramo-la no capítulo II, "Do nascimento do amor", ela está na 5ª frase:

 

"A primeira cristalização começa. Sentimos prazer em ornamentar com mil perfeições uma mulher de cujo amor temos certeza; detalhamos toda sua felicidade com uma complacência infinita. Isso se reduz a se exagerar uma propriedade esplêndida, que acaba de nos cair do céu, que não conhecemos, e de cuja posse se está seguro.

 

Deixai trabalhar a cabeça de um amante durante vinte e quatro horas, e eis o que encontrareis: Nas minas de sal de Salzbourg, joguemos, nas profundezas abandonadas da mina, um ramo de árvore desfolhado pelo inverno; dois ou três meses depois, nós o retiramos coberto de cristalizações brilhantes: os menores galhos, aqueles que não são mais espessos do que a pata de um bem-te-vi, estão coberto de uma infinidade de diamantes, móveis e fervilhantes; é-nos impossível reconhecer o ramo primitivo. O que chamo cristalização é a operação do espírito, que extrai tudo o que se apresenta da descoberta de que o objeto amado possui novas perfeições".

 

Segue uma descrição fenomenológica com exemplos e uma hipótese, em parte, naturalista, "O fenômeno que me permito chamar de cristalização vem da natureza que nos ordena ter prazer e que nos envia o sangue ao cérebro, do sentimento que os prazeres aumentam com as perfeições do objeto amado, e da ideia: ela é minha". 8

 

Stendhal se entrega à escrita desse livro depois de seu encontro com Métilde (em 1818), por quem ele teve uma paixão amorosa, à qual, disfarçadamente, poderíamos dizer, ela não corresponderá. Ele revisará o livro em 1822, consagrando-lhe posteriormente três prefácios. O último, uma semana antes de sua morte.

 

O livro se compõe, em sua edição final, de dois Livros distribuídos em 59 capítulos, aos quais se acrescentam Fragmentos (que ele não intitula aforismos, mas que a maior parte tem essa forma), um Apêndice consagrado às Lições de amor, e os Complementos à edição inicial, mais um novo texto que tem a forma de um romance consagrado à cristalização, O ramo de Salzbourg. Mas, também, um texto sobre os "fiascos", Fiascos, espécie de pequeno tratado sobre a impotência masculina, consequência do amor-paixão – é, aliás, a Stendhal que devemos a introdução dessa palavra italiana na língua francesa. Não podemos ver, nesse escrito, uma resposta ao que faz enigma para Stendhal, ou seja, a não reciprocidade de seu amor por Métilde, mas, também, a impotência à qual é confrontado? Lilia Mahjoub o diz nesses termos: "Stendhal amava as mulheres, mas não todas de cada vez. Seu amor por Mathilde-Métilde foi um fracasso certamente, mas esse amor também se alojou em todas as linhas do seu Do amor. Stendhal amou esse livro e a ele retornou diversas vezes, durante toda a sua vida... Eu diria que, nas entrelinhas desse livro, desliza o objeto pequeno a, o do seu fracasso, de sua falta, e que leva o nome de Métilde".

 

2. Charles Baudelaire, Escolha de máximas consoladoras sobre o amor9

 

Baudelaire, nesse pequeno texto, publicado pela primeira vez em 1846, enuncia: "Se começo pelo amor é porque o amor é para todos – mesmo se eles negam a grande coisa da vida!" 10 . Esta frase faz eco com a de Stendhal, mas ali onde Stendhal falava dele, "eu", Baudelaire fala deles, "eles", incluindo-se, no entanto, ao mesmo tempo: "o amor é para todos". Aliás, Baudelaire evoca Stendhal, pouco depois, a respeito do amor à primeira vista, e o texto contém outras referências a esse escritor que é seu contemporâneo, notadamente, quando ele fala dos "poetas hoffmânicos que a gaita põe a dançar nas regiões de cristal, e que o violino rasga como uma lâmina que procura o coração." 11

 

Aqui, as máximas são de um poeta, do qual reconhecemos os modos, o estilo, quando se leu, por exemplo, As flores do mal. É ler a forma como ele se liga inicialmente ao sentimento: "... quando o sentimento é bem carregado, guarnecemos nosso coração como um frontispício. Como assim? Se vocês não são homens de verdade, sejam verdadeiros animais! Sejam ingênuos, e serão, necessariamente, úteis ou agradáveis a alguns. – Meu coração – estivesse ele à direita – encontrará mil coparias entre os três milhões de seres que mastigam as urtigas do sentimento".12

 

Uma máxima é uma proposição que serve de regra (Littré) para a conduta; ela pode se inserir numa moral (por exemplo, "As máximas de La Rochefoucault").

 

Baudelaire não é moralista. Ele, muito mais, reparte os "todos" aos quais ele se endereça e, como eu disse, nos quais ele se inclui, em categorias, e propõe a cada um pertencente a uma ou a outra categoria, uma máxima. A uns, "que o amor lhes seja um calmante". 13A outros, "que o amor lhe seja um estimulante, um fortificante e um tônico, e a ginástica do prazer, um encorajamento permanente à ação!"14 É preciso, portanto, escolher seus amores. E "a liberdade consiste em evitar as categorias de mulheres perigosas, isto é, perigosas para vocês".15 Como reconhecer a mulher que convém? "Sua amante, sua mulher celestial, lhe será corretamente indicada por suas simpatias naturais, verificadas por Lavater 16, pela pintura e pela estatuária". 17

 

Baudelaire retorna à periculosidade no amor: "Aliás, nossas simpatias não são, de maneira geral, perigosas: a natureza, a cozinha, como em matéria de amor, raramente, nos dá o gosto do que nos é mau". 18 A psicanálise nos ensinou que não se trata, num caso, como no outro, de natureza, mas, sobretudo, de uma relação frente ao objeto do desejo e/ou da pulsão.

 

É preciso ler esse texto do começo ao fim – ele é curto – e nisso é respeitada a escrita de Baudelaire, que não deixava nada ao acaso e cuja obra demanda que ela seja lida na ordem que ele escolheu, a qual é parte intrínseca do seu trabalho, que seja para seus livros ou uma escolha de máximas.

 

Acrescentarei, entretanto, que ele se entrega também – não sem ter advertido que "Como eu compreendo o amor no sentido mais completo, eu sou obrigado a exprimir algumas máximas particulares sobre questões delicadas".19 – a um inventário de preconceitos que, uma vez apresentados, são de alguma forma, condições do amor, para ele; em todo o caso, ao que me parece: magreza; feiura; falta de cultura (ver a apologia do erro de ortografia que "pode ser em sua totalidade um poema ingênuo de lembranças e de satisfações"; aqui, não podemos deixar de lembrar do "lizmente", caro a Michel Leiris); tolice; religião.

 

Vocês, sem dúvida, observaram que se trata de máximas consoladoras. Encontramos, talvez, a significação da escolha e do lugar, no título, desse termo no último parágrafo do texto das máximas que podemos qualificar de viático:

 

"Toda moral testemunhando da boa vontade dos legisladores, – toda religião sendo uma consolação suprema para todos os aflitos. – Toda mulher sendo um pedaço da mulher essencial – o amor sendo a única coisa pela qual vale a pena declamar um soneto e colocar roupa íntima fina – eu respeito todas essa coisas mais do que tudo, e denuncio como caluniador qualquer um que fizer desse fragmento de moral um motivo para persignar-se e alimento para escândalos. – Moral brilhante, não é? Copos de cor muito colorida talvez, a eterna luz de verdade que brilha dentro? – Não, não. Se eu quisesse provar que tudo é o melhor no melhor dos mundos possíveis, o leitor teria o direito de me dizer, como ao macaco genial: tu és um miserável! Mas, eu quis provar que tudo é ainda para o melhor no pior dos mundos possíveis. Logo, ser-me-á muito perdoado, porque eu amei muito... meu leitor... ou minha leitora". 20

 

O que me parece ser seu viático, é o esforço para demonstrar "que tudo é ainda para o melhor no pior dos mundos possíveis." Isso não faria sentido nele, justamente, sem algumas preces e um consumo significativo de fumo e de álcool.

 

Podemos, então, dizer que, para ele, ao "todos" de partida responde "toda mulher sendo um pedaço da mulher essencial". Uma declinação de A mulher, com "A" barrado? Seria necessário estudá-lo com mais precisão.

 

3. Honoré d'Urfé, Astreia 21

 

Lacan nos disse que ela "não foi pouca coisa para seus contemporâneos. É tão pouca a nossa compreensão do que foi o livro para eles, justamente, que nada sentimos além de tédio". 22

 

Éric Rohmer retomou Astreia, ao gosto do dia, encenando os amores de Astreia e de Celadon.

 

Honoré d'Urfé não concluiu seu romance, do qual somente três partes são comprovadamente da sua pena, e, Jean Lafond na edição proposta por Gallimard (Folio) fez uma escolha: ele não publicou todos os livros que constituem a primeira parte, para poder propor uma edição manejável, em formato de bolso, que já conta com 383 páginas (cada parte está constituída por 12 livros), mas ele propôs um resumo dos capítulos desprezados.

 

Honoré d'Urfé escreveu, no início do século XVII, uma história transcorrida no século V, na Gália. Ele é escrito a respeito de Astreia, que se caracteriza por ser uma obra pastoral, gênero literário adotado pelos espanhóis e pelos italianos. De fato, nós estamos, no começo da história, no campo, num quadro idílico onde corre o Lignon, entre pastores e pastoras aos quais se misturam ninfas, druidas e mágicos. Esse espaço se relaciona com o lugar da infância e da adolescência de Honoré d'Urfé. Se o amor contrariado, de Astreia e de Celadon, é o cerne do romance, ele apresenta uma complexa galeria de retratos de personagens que mantêm laços de amizade e de amor.

 

Claro que é impossível resumir Astreia, mas podemos apresentar a trama narrativa: Celadon e Astreia são dois pastores que se amam há três anos, mas suas famílias são inimigas, e Astreia pede a Celadon para fingir que ele ama outra. Um próximo a convence de que isso não foi de mentira, que Celadon a traiu e ela o repudia. Desesperado, Celadon se joga nas águas do Lignon e é carregado para muito longe pela correnteza. Ele será recolhido por três ninfas que se apaixonam, todas três, por ele. Celadon só sonha em fugir para reencontrar Astreia e ele recebe a ajuda do druida Adamas. Ele, então, se esconde na floresta onde constrói um templo para a sua amante. Adamas o ajuda disfarçando-o de garota e fazendo-o passar-se pela sua própria filha. Celadon-Alexis, torna-se, então a companheira de Astreia que não deixa de perceber certa semelhança com seu amante. Aquele recusa a dar-se a conhecer, na medida em que Astreia não o reconhece explicitamente. O romance de Honoré d'Urfé termina nesse ponto.

 

Lê-se com a ajuda do prefácio de Jean Lafond à edição Folio que abre as vias de acesso à leitura de uma obra menos simples do que parece e que é reputada de impossível de ler, "entediante" nos diz Lacan. J. Lafond procede, aliás, de uma maneira elegante, convidando-nos à leitura de outra obra, da qual ele louva as qualidades (e da qual Nathalie Georges me recomendou a leitura), a de Michel Chaillou, O sentimento geográfico23.

 

O que rapidamente me tocou na leitura de Astreia foi a ressonância que provocou em mim com um texto de Jacques-Alain Miller, "Os labirintos do amor" 24 e não somente porque o termo "labirinto" aparece inúmeras vezes no romance. Jean Lafond evoca, no prefácio, uma carta de Astreia a Celadon – que a edição resumida não coloca –, em que ela compara a busca amorosa "a um perigoso labirinto". Acreditando-se traída por Celadon e depois que ele se jogou no Lignon, ela oscila, após uma conversa com o irmão dele, entre acreditar em sua fidelidade e não crer nela, o que o autor resume por "um labirinto de pensamentos"25 . A galeria de personagens introduzidos por Honoré d'Urfé, em seu romance, permite-lhe apresentar diferentes posições quanto ao amor. Assim, o personagem do pastor Hylas reivindica uma postura de inconstante que se exprime, notadamente, sob a forma de uma canção, "A canção do inconstante Hylas" (p. 61) 26. O tema da inconstância está, aliás, presente desde a segunda página do romance: "só a inconstância é constante, duradoura mesmo em sua mudança". Celadon é o oposto dessa postura, mas está longe de ser o amante frágil e fiel de onde a cor denominada "verde celadon" poderia ser o reflexo, ele é animado pelo desejo. Desta forma, ele se passa pelo travestimento em garota, não somente para reencontrar Astreia, após sua separação, mas, já é travestido de garota que ele se aproxima dela à primeira vez, quando ela dançava nua em uma festa dedicada à Vênus.

 

Ao longo do romance, conversas sobre o amor são compartilhadas entre homens e entre mulheres, mas, também, entre homens e mulheres. Isso nos lembra O banquete de Platão, o que igualmente é notado por Jean Lafond.

 

A edição de Astreia, na versão completa, conta 5.000 páginas: não se poderia pensar que, como para Stendhal com seu "Do amor", ela seria uma tentativa de resposta a uma questão e que, na medida em que o romance ficou inacabado, desenvolver sua questão, sob forma romanesca, e os labirintos inventados para colocá-la em uma descoberta sinthomática?

 

Tradução: Elizabete Siqueira

Revisão: Glacy Gonzales Gorski

 

1 Lacan, J. Le Séminaire, Livre XIX, ch. XII. P. 174.

2 Ibid.

3 Ibid

4 Sollers, P. Trésor d'amour. Gallimard,2011.

5 Stendhal. De l'amour.GF-Flammarion, 1965.

6 Majhoub, L. La cause du désir. nº 80, Navarin, 2012.

7 Stendhal. Vie de Henry Brulard.

8 Stendhal, ibid, p. 35

9 Stendhal, ibid, p. 35

10 Baudelaire, C. Choix de maximes consolantes, 1848, versão eletrônica: http://baudelaire.litteratura.com/ressources/pdf/oeu­_14.pdf

11 Ibid.

12 Ibid, p. 4.

13 Ibid.

14 Ibid.

15 Ibid.

16 Lavater, J.k. L'art de connaître les homes par la physionomie (1775-1778).

17 Baudelaire, Ch., Ibid.

18 Ibid. p.5.

19 Ibid.

20 Ibid. p.8.

21 D'Urfé H. L'Astrée, Gallimard, Folio Classique, 1984.

22 Lacan, J., ibid.

23 Chaillou, M. Le sentiment géographique, Gallimard/Imaginaire, 1976.

24 Miller, J.-A. La lettre mensuelle, nº 109, 1992. [Correio nº56, 2006. NT].

25 D'Urfé, H, ibid, p.54.

26 Ibid. p.61.

 

 

CAPÍTULO XVI – OS CORPOS APRISIONADOS PELO DISCURSO

TEMA I - O UM CONSTITUI (faz) O SER – COMO A HISTÉRICA CONSTITUI (faz) O HOMEM

 

Lacan não se despede de seu ensino nesta última aula do Seminário ... ou pior, não fará um resumo da sua transmissão ao longo desse ano, mas assinala que o que nos interessa do discurso analítico é poder cingir esse impossível que chamamos real, e que como tal une os analistas na sua prática. Destaca-se, nesse impossível de dizer, o axioma: Que se diga, como fato fica esquecido por trás do que é dito, / que não se ouve. E quem comanda, segundo o enunciado Há-um é o Um, esse Um que cria o Ser, no âmbito da ontologia, conforme o Parmênides, sem por isso fazer ontologia demais.Em relação ao gozo, encontra-se, em Radiofonia,o conceito de mais-de-gozar no seu máximo desenvolvimento, onde Lacan transcreve o conceito de mais valia de Marx para o de mais-de-gozar, pode-se ler: "O Mehrwert é o Marxlust, o mais-de-gozar de Marx". (Cf. p.434)

Obra de arte citada:

O escamoteador

 

L'escamoteur de Hieronymus Bosch

Ao se referir ao quadro O Escamoteador – do pintor holandês Hieoronymus Bosch–, Lacan faz alusão àquilo que justamente não ocupa o discurso analítico.  Pintado entre 1475 e 1505, o quadro mostra um escamoteador fazendo seu número frente aos passantes. O primeiro tem, em sua mão direita, uma noz-moscada (chamada antigamente de "escamot") no qual ele fará aparecer e desaparecer por meio de copinhos de dedos. Ora, ele encarna o mundo com seus enganos, dissimulações e artifícios. Seus passes de mágica desviam os passantes daquilo que é importante. Assim, oburguês, hipnotizado pelo jogo, tem sua bolsa roubada por um cúmplice do mágico. Justamente, o ilusionista não diz o que ele faz e faz o que ele não diz. Assim, ele joga com as aparências e triunfa ao desviar a atenção do público do essencial. 

 

 

A - O SUPORTE É O CORPO

 Lacan (p.217) diz que quem comanda é o que ele produziu nesse seminário sob o título de Há-um (Ya d'lun) e o Um cria o Ser, para isso ele reenvia novamente ao Parmênides para, no diálogo platônico, encontrar esse Um que cria o ser. Vale ressaltar que o Um não é o Ser, mas o constitui, como insiste Lacan no presente capítulo.

 

B - O GOZO, ELE EXISTE

Lacan (p.218) articula tal formulação com o discurso, já que o discurso como tal é sempre discurso do semblante. Dessa forma, se há alguma coisa que se autorize pelo gozo, é simular (faire semblant), no que se apreende o mais-de-gozar.

 

Autores citados:

Platon, OBRAS COMPLETAS. Parmênides o de las ideias. Aguilar, Madrid, 1969. 

"[...] se o Um é, é possível que seja e que não participe do ser? – Isso não é possível. – Portanto, o ser será ser do Um, sem que por isso seja idêntico ao Um; pois senão o ser não seria ser do Um, nem o Um participaria do ser e seria a mesma coisa dizer que o um é e que o Um é o Um. 

(...) com o qual o que é, tem outra significação que o Um.

(...) são distintos no Um, seu ser e o que ele mesmo é. Pois como o Um não é ser senão um, como tal participa do ser." Cf. pp. 968-969".

Karl Marx, O capital (1867), Coleção Os economistas, São Paulo: Nova Cultural, 1988.

 

Referências em Lacan

O seminário, Livro III, As psicoses, aula de 11 de abril de 1956, sobre o caso do Presidente Schreber.

Cf. "De uma questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses" (1957), in Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, pp. 537-590.

Cf. "Formulações sobre a causalidade psíquica" (1946), op. Cit. Neste artigo, Lacan destaca os que não podem ser substituídos: Sócrates, Platon, Marx e Freud. p. 193

Cf. "Do sujeito enfim em questão" (1966), op. Cit., Marx e Hegel sobre a questão da verdade. p. 234.

Cf. "Radiofonia" (1970), in Outros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.434.

 

TEMA II – O DISCURSO COMO TAL É SEMPRE DISCURSO DO SEMBLANTE

Lacan pensa os discursos no que ele chamou de "a ronda dos quatro discursos".  Nesta última aula do seminário, vai do discurso do mestre ao discurso do analista, seu avesso, para dizer que o que nasce de uma análise, nasce no nível do sujeito da fala, do falasser. E o produto de uma análise será o resultado do que o analista, entanto objeto a, ocupando o lugar do semblante e ao mesmo tempo de agente no discurso analítico, vir a propor ao sujeito no decorrer da análise, como via de acesso aos seus modos de gozo. Proposta que será acolhida pelo sujeito porque, como dizia Aristóteles, ele pensa com sua alma.

 

A – DE QUE SE TRATA NA ANÁLISE

Diferentemente do discurso do mestre onde você – como corpo – é petrificado, no discurso analítico, o analista como corpo se encontra em posição de semblante do objeto a. Ao nos referirmos à Conferência de Lacan em Genebra – pronunciada três anos mais tarde, em 4 de outubro de 1975, encontramos justamente a seguinte formulação: Na análise "então a pessoa que fez esta demanda de análise, quando ela começa o trabalho, é ela que trabalha. Você não a deve considerar como alguém que você tenha que petrificar. O que você faz lá? Estapergunta é tudo aquilo do porquê eu me interrogo desde que comecei".

 

Referências em Lacan

Conférence à Genève sur le symptôme (4 octobre 1975). In : Bloc-notes de la Psychanalyse, n°5.

 

B - A INTERPRETAÇÃO COM FIM

Em contraposição ao esquema ternário de Charles S. Pierce, Lacan o substitui colocando no lugar da representamen pierciana o objeto a. Assim, para representamen-objeto (Onde estou no dizer? em termos lacanianos) tem que ser sempre reinterpretado. Trata-se de uma operação lógica, da extração daquilo que é dito e não do dizer. Lacan retomará as formulações de Pierce nos anos ulteriores, como em seus Seminários XXI, XXII e XXIII. Neste último, ao evocar a relação ternária de Pierce, Lacan a substituirá por "Simbólico – Real – Imaginário".

 

Cf. O Seminário, Livro 23, O Sinthoma (197561976), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007. Sobretudo a aula de 16 de março de 1976 sobre a orientação do real e a forclusão do sentido.

 

Autores citados e Referências

Aristóteles. Organon. Tradução, prefácio e notas de Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães Editores, 1985. Cf. texto sobre A Lógica e "As proposições modais".

Charles S. Pierce. Referência aos quadrantes com seus traços verticais e horizontais para falar em Universal afirmativo e negativo Particular. (Cf. a este respeitoo Seminário Ato analítico de 1967-1968).

Platon.  A República, Livro VII, "O mito da caverna".

 

Pesquisa realizada por Mirta Zbrun (coordenadora), Luciana Castilho de Souza e Patrick Almeida.

Revisão: Glacy Gonzales Gorski

 

 

PROGRAMA