21 de novembro 2013 - Hotel Panamericano - Buenos Aires - Calle Carlos Pellegrini 551

 

Boletim haun #005

DOWNLOAD

 

 

Editorial

Glacy Gonzales Gorski

Lacan e a escrita chinesa

 

Em Rumo a um significante novo, Lacan, ao interrogar se o psicanalista seria eventualmente inspirado por algo da ordem da poesia em sua interpretação, toma como referência os poetas chineses, por estes se exprimirem pela escrita. Ao mesmo tempo, vem nos dizer que “existe algo que nos dá a sensação de que eles não estão reduzidos a isso; é que eles cantarolam”1. Nesse sentido, recupera o que François Cheng enunciou diante de si: “um contraponto tônico, uma modulação que faz com que se cantarole – pois da tonalidade à modulação, há um deslizamento”. Essa modulação da poesia chinesa aliada à escrita inspirou Lacan a se dedicar ao estudo da língua chinesa para instituir uma prática analítica orientada pelo real.

 

Desde o Seminário 18, Lacan já falava do “papel absolutamente axial ”2   que a escrita teve para a China. A função da escrita na construção do arcabouço teórico da psicanálise de orientação lacaniana vem do interesse especial que Lacan tinha pela língua chinesa.
Severino Cabral, Dr. em Sociologia, Sinólogo e estudioso da escrita lacaniana, no texto que editamos no quinto número do haun, esclarece, com erudição e de forma candente, a relevância do acesso ao conhecimento do ideograma chinês para a existência de uma teoria do significante em Lacan. Tais tributos têm uma relação estreita com a particularidade e a singularidade desta língua, uma vez que ela possui caráter monossilábico e tonal e se vale, em sua expressão gráfica, de uma escrita ideográfica e não de um alfabeto fonético. Frisamos que a característica essencial da enunciação no idioma chinês é que, em uma só palavra, há múltiplos significados semânticos, de modo que o sentido é definido pela entonação e pela colocação no conjunto do que está sendo dito. Portanto, em si mesma, a língua se configura, segundo o autor, como uma barreira ao entendimento, desvelando que podemos pensar “a língua como o real do trauma”.

 

Nesta edição do haun trazemos, ainda, outro texto de Severino Cabral sobre o sétimo capítulo do Seminário Livro 19 ...ou pior, uma valiosa contribuição, onde ele destaca que este se configura como uma exposição das mais densas da concepção lacaniana do seu teorema “Não existe relação sexual”. Salientamos também que é justamente neste capítulo, tão apropriadamente nomeado A parceira desvanecida por Jacques-Alain Miller, que Lacan nos convida a pensar sobre as especificidades do gozo feminino. Severino sublinha, ao comentar esse texto que, nesse momento do ensino de Lacan, o “pensamento chinês” foi introduzido via referências às duas essências fundamentais Yin, a essência feminina, e Yang, a essência masculina, que estão presentes na cosmologia chinesa desenvolvida no Yi Jing – O livro das mutações.

 

Mirta Zbrun, por sua vez, nos apresenta, no seu belo texto, uma pequena mostra de poesia clássica chinesa trazendo pontuações de Lacan nas quais ele enfatiza que “é preciso que tomemos na escritura chinesa a noção do que é a poesia”.


Por fim, para servir de guia à leitura do capítulo VII do Seminário 19 – A parceira desvanecida – editamos também as referências bibliográficas, reunidas através da pesquisa coordenada por Mirta Zbrun. Vale a pena conferir.


 Concluindo, desejamos que este novo número do boletim haun possa lhes proporcionar uma leitura fecunda e avanços na preparação do Seminário colóquio que terá lugar na BAL – Buenos Aires Lacaniana em 21 de novembro de 2013.  Lembramos, mais uma vez, que o início será às 13h30min e que as inscrições podem ser efetuadas no site www.ebp.org.br/haun , nas Seções e Delegações.

 


1 LACAN, J.  Rumo a um significante novo (1977). Opção lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo, n.º 22, ago. 1998, p. 11.

2 _____. O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante (1971). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 52.

 

 

A ESCRITA CHINESA E A TEORIA DO SIGNIFICANTE DE JACQUES LACAN.

 

“Meng zi dit:” Lorsque les gens discourent sur la natures des choses, ils cherchent d´abord à intervenir dans son cours”

Severino Cabral*

 

Este tema cada vez mais parece estar presente em todos os horizontes em que se debatem, hoje em dia, os rumos do mundo: isto porque a China está presente em todos os horizontes.  A China, por sua língua e sua cultura, por sua extensão e presença, desde sempre é estudada no Ocidente europeu, onde os jesuítas, com especial empenho, introduziram o estudo dos textos canônicos chineses nos séculos XVII e XVIII. 

 

Principal herdeira desse esforço transcultural e transcivilizacional, sede de uma das primeiras grandes Escolas de Sinologia euro-ocidental é, no ambiente intelectual da França dos anos 30, que Jacques Lacan foi iniciado na prática da língua e da cultura chinesa. Essas marcas estão  presentes em todo o seu ensino e aí começa a florescer o extraordinário estilo de Lacan, o “Gongora da psicanálise”,  associado, num mesmo movimento, a sua instigante e permanente busca da elucidação da verdadeira natureza da escrita e da linguagem.


 En passant par le chinois et par le japonais, como observa J-A. Miller, em breve nota sobre aspecto essencial que envolve Le Séminaire “D´un Discours qui ne serait pas du semblant”Livre XVIII cuja capa invocadora reproduz um quadro que retrata o Imperador Kangxi.  E aqui já vemos algo do claro enigma chinês, pois tal Imperador aparece numa posição e com tal semblante, que parece se tratar de um letrado chinês, cercado dos instrumentos do intelectual da época, o pincel e o papel prontos para desenhar ideogramas.  Trata-se do retrato do “Filho do Céu”, o Imperador Kangxi, da dinastia Qing, que governava a China com sua cultura milenar baseada numa escrita ideográfica e numa língua basicamente monossilábica e tonal, que tanto atraiu a atenção de Lacan.


Num capítulo “Contra os Lingüistas” do Seminário XVIII, Lacan faz referência a uma crítica a sua Teoria do significante feita por um linguista que ele não nomeia, e sobre quem ele diz algumas coisas bastante ácidas, isso está nas notas explicativas ao final do seminário.Há mais de quarenta anos, ao ler “Clefs pour la Lingüístique” de autoria de G. Mounin, me impressionou a agressividade e a dureza com que criticava as teses de Lacan sobre a linguagem e o significante.  A resposta de Lacan faz todo sentido, diz simplesmente que, “o senhor linguista jamais conheceu o chinês, e por não ter conhecido o chinês, ele não sabia nada acerca da sua teoria do significante”. 


Qual o sentido que Lacan queria dar a essa tese? Talvez, o de que, sem conhecer minimamente o funcionamento da língua escrita chinesa, ele, Lacan, não poderia ter elaborado a sua “Teoria do Significante”. Dirá algo sobre isso no Seminário XVIII: “Je me suis aperçu d´une chose, c´est que, peut-être, je ne suis lacanien que parce que j´ai fait du chinois autrefois”. Ele se impõe a seguinte questão: por que esta importância vital do acesso ao conhecimento do ideograma chinês para a existência de uma teoria do significante?  É possível pensar que tem a ver com a natureza estrutural do idioma chinês: a natureza de uma língua falada de tendência monossilábica e tonal, que se vale em sua expressão gráfica de uma escrita ideográfica e não de um alfabeto fonético? Sim, tem a ver essencialmente com o idiomatismo do chinês, com a singularidade da língua chinesa.


 Há muito tempo que a humanidade parece conviver com a língua ideográfica, a qual, no passado mais antigo do homem, deu origem à escrita das civilizações do Vale do Nilo e da Mesopotâmia com a criação dos hieróglifos e da escrita cuneiforme. Todas as escritas mais antigas conhecidas, portanto, e não apenas a chinesa, foram ideográficas. Mas elas foram ultrapassadas pela invenção do alfabeto fonético, amplamente desenvolvido pelos povos mediterrâneos, marco miliário da fundação do mundo helênico e latino e da civilização ocidental. No entanto, para o conjunto da humanidade da Ásia Oriental, a escrita ideográfica não só não desapareceu como continuou a ser o instrumento maior da civilização para as populações da China, Coreia, Japão e Vietnam –  e essa persistência no tempo tem uma característica própria: faz toda a diferença e singularidade dessa cultura e dessa humanidade.


A revelação da existência de um “conjunto significante” – constituído pela língua e o pensamento chinês – estará presente de forma seminal na elaboração da concepção lacaniana do significante.  Ela se dá a partir da apropriação do ideograma chinês e da particularidade dessa língua, basicamente pelo caráter monossilábico e tonal que soa de modo tão estranho para o conjunto das línguas românicas e germânicas. A característica enunciação do chinês, uma só palavra com múltiplos significados semânticos tendo o seu sentido definido pela entonação e pela colocação no conjunto do que está sendo dito, em sim mesma, é uma barreira ao entendimento, “a língua como o real do trauma”. A escrita ideográfica também não assinala exatamente o som, tornando a enunciação oral, assim como a forma escrita, algo inapreensível para o homem ocidental, a não ser através de uma difícil e árdua iniciação.


Questão – essa inapreensibilidade – que interpelava Pascal em plena revolução científica e filosófica do século XVIII em sua obra “Pensées” (1670), que, ao conceber uma apologética da religião cristã, se dá conta de que a cronologia da origem da humanidade que vem do Velho Testamento e das Sagradas Escrituras, se verdadeira, se contrapõe ao que os jesuítas nos trazem sobre os livros canônicos chineses e sobre a cronologia da humanidade segundo a existência do ecúmeno chinês. Então, a quem dar crédito: “A Moisés ou à China?”.
 Vemos que o personagem que está na capa do Seminário Livro XVIII, o Imperador Kangxi, que era um manchú, uma etnia não chinesa do nordeste da China, ao assumir o semblante de um Imperador chinês teve a preocupação de traduzir em máximas o seu pensamento.  Formulou sua visão de mundo integrada a uma deontologia cuja primeira máxima era a da “piedade filial” e que tão fortemente marcava a sociedade oriental de um patriarcalismo que a distanciava da moderna sociedade ocidental.


  Há aí algo que separa, aparentemente, os dois hemisférios, o ocidental e o oriental, como Rudyard Kipling diz: “O Ocidente e o Oriente jamais darão as mãos”.  Podemos dizer que é um obstáculo epistemológico, é um obstáculo que divide a cultura do Ocidente frente à cultura chinesa. Não é por acaso que também Hegel dizia: “Impossível compreender de todo a concepção chinesa”.


Porém, há uma forma no Ocidente que desenvolveu uma lógica capaz de entender a natureza da língua e da escrita chinesa, essa forma é a psicanálise. No texto do Seminário XVIII, “D´un Discours qui ne serait pas du semblant” ao falar de seu próprio ensino, Lacan comenta que, no discurso analítico, trata-se de uma lógica da efetividade, da eficácia, isso o encontramos no sistema chinês de pensar. Um sistema baseado na enunciação de palavras que se distinguem, e que se ajustam ao contexto e à entonação, e cuja representação escrita e seu emblema gráfico são solidários do emblema vocal, ajustado pela “eficácia”, pela capacidade de organizar a conduta, de forma que esse significante seja capaz de interpelar o sujeito que, interpelado, decida-se por um, ou outro “curso”. Por isso, Lacan dirá que o pensamento chinês se ajusta ao seu passado teórico, e que ele se apercebeu de que não seria lacaniano, senão se encontrara com a língua chinesa, que só era lacaniano porque fez o chinês outrora.

 

A escrita existe na China desde tempo imemorial. Essa escrita tem na China um fundamental papel e é esclarecedora sobre o que nós podemos pensar da função da escrita.  No momento axial – séculos V e III antes da nossa era – a cultura e a civilização chinesa se sintetizam num conjunto de grandes obras e de grandes pensadores, entre eles Confúcio e Mêncio.  Confúcio é o pensador que, para a tradição da escola dos letrados na China (Ru Jia), representa o maior mestre, o grande mestre.  O segundo grande mestre é Mêncio, personagem central do Seminário XVIII de Lacan.


Confúcio compilou tudo o que havia sido produzido na China e transformou isso num ensinamento, uma obra que, depois, tornou-se uma obra canônica. Essa obra se constitui no verdadeiro núcleo central da cultura chinesa: um livro de poesia (Shijing) que reúne os poemas que funcionavam como os mais belos, mais ordenados, mais clarificadores de sentido. Outro volume que traz o estudo das dinastias antigas, o clássico da narrativa histórica (Shujing). Outro grande livro, o livro mais antigo chinês, é o livro das mutações (Yijing).


Esta passagem pelo mundo antigo chinês é necessária para situarmos o papel do Imperador como “Filho do Céu”, para elucidar e tornar coordenado o legado de Confúcio, que se encontra na famosa citação que está no Seminário XVIII de Lacan (Cf., p. 55). Trata-se da ideia confucionista de que o homem, para fazer as coisas, tem que seguir um curso (o Tao) e, ao seguií-lo, ele pode orientar a natureza do processo.  É o exemplo que dá o Imperador Kangxi escolhido como ilustração da capa do seminário “De um discurso que não fosse semblante”. Kangxi, fundador mítico da primeira dinastia, a mais antiga da China, notabilizou-se porque revelou o domínio das águas, seguindo o curso (Tao) delas e não se defrontando com elas.  Essa é a ideia importante que está na concepção da teoria chinesa e que tem a ver também com certas características do discurso analítico.


Lacan dirá, num outro texto, em “Autres écrits” (Cf., Avis a u lecteur japonais (1972)pp. 497- 499) que, numa viagem que fez ao Extremo Oriente nos anos setenta, ele foi convidado para ir à China, mas acabou visitando o Japão. E, dessa experiência, tirou múltiplas inspirações. Uma extraordinária foi a seguinte: por ele saber falar chinês, chegou a se entender com os japoneses, mesmo não sabendo falar japonês, porque tudo que estava escrito no Japão ele era capaz de ler e entender. O japonês é uma língua diferente da língua chinesa, pois ela é uma língua aglutinante, diferente da língua monossilábica.  Ela tem, portanto, prefixos e sufixos, mas a sua língua ideográfica, a sua língua escrita, é o ideograma.


O japonês inventou uma maneira própria de sinalizar o som, que acrescenta ao radical chinês o seu afixo ou sufixo, é o Hinagana e o Katagana. São os sinais que representam o som do japonês para aquela palavra, então, a palavra japonesa é acrescida na escrita de sinais que dão à pronúncia do sufixo e do prefixo. Mas para quem quer entender o que está escrito, se fixa no radical, e ele é sempre uma palavra chinesa, uma letra chinesa, que é o ideograma, e disso Lacan se apercebeu bem.  O que levou o Lacan a falar de “um sujeito específico japonês”.


A distância entre o pensamento e a fala era dada por essa estranha relação com uma escrita ideográfica, quando a sua própria fala era outra.  Quer dizer, o que há de importante que Lacan vê no Japão é que há possibilidade de se fazer psicanálise lá, dessa forma, através da própria escrita. É disso que se trata quando ele fala no final do texto, no tom próprio de Lacan, que se algum dia a psicanálise penetrasse no Japão, o que aconteceria com os psicanalistas? Eles precisariam apenas do stylo, da caneta. Ao passo em que Lacan, no Ocidente, para fazer o discurso analítico, ele teria que ter um “estilo próprio”.


Perguntamo-nos, hoje, de onde Lacan tirou elementos para a sua concepção do ideograma que teriam ajudado a estabelecer a teoria do significante?


Entre outras referências há de se considerar, a de um autor muito importante na formação da cultura francesa contemporânea, um membro da grande escola sociológica francesa que se dedicou ao estudo da China, Marcel Granet. Ele deixou uma obra, um estudo até muito distanciado da tradicional sinologia francesa que foi o seu “Estudo sobre o Pensamento Chinês”. A primeira parte de seu ensaio é dedicada ao estudo da língua e da escrita chinesa, uma das fontes do conhecimento de Lacan da China.


Marcel Granet, que deixou marca e discípulos na sinologia como François Jullien, criou vários tipos de recirculação e de reconstrução do pensamento chinês, e nos leva a pensar num outro texto clássico chinês, o “Caminho do Meio” ou “O invariável Caminho do Meio”, que começa com a frase: "O que o céu gravou no coração do homem é a lei natural.” A direção dada por essa lei natural é o que se chama o curso, o Tao, mostrar ele a outros com seu exemplo e seu falar, isso se chama “ensino”, mais uma influência em Lacan, que chamou sua transmissão de “ensino”.


Em síntese, concluímos que, para ocupar o seu lugar na psicanálise, Lacan se inspirou na língua, no ideograma e no “curso” presentes no pensamento chinês, de onde mostrou todo um estilo. Que estilo! Ele mesmo afirma que não poderia desenvolver a sua teoria do significante se não tivesse esse conhecimento prévio. E, como é nas vastidões da Ásia que se encontra a maior parte da humanidade, a maior parte dos sistemas culturais vivos, por uma questão de um desafio de natureza extraordinário para os pensadores e para os psicanalistas, deve-se cuidar, ou começar a cuidar desse outro campo de dados, o “pensamento chinês”. Talvez, parodiando Mallarmé, se possa dizer: –“sans présumer de l’avenir qui sortira d’ici, rien ou presque un art”.


* Severino Cabral é Doutor em Sociologia pela USP, Presidente do IBECAP –  Instituto Brasileiro de Estudos da China e Ásia Pacifico. Autor de vários livros e inúmeros artigos sobre o pensamento chinês, entre eles “China: uma visão brasileira”.


Agradecimentos: à Mirta Zbrun, pelo estabelecimento do texto, à Angelina Harari, pelo convite a pronunciar uma conferência na Escola Brasileira de Psicanálise a partir da qual nasce este novo escrito e à Glacy Gonzales Gorski pelo amável convite para publicar este texto no instigante Boletim haun

 

Referências

CAMPOS, Haroldo (Org.). Ideograma: lógica, poesia e linguagem. São Paulo, EDUSP, 1994.
CHENG, Anne. Histoire de la pensée chinoise. Paris, Du Seuil/Points,  2002.
CHENG, François. Vide et Plein: le langage pictural chinois. Paris, Du Seuil/Point, 1991.
ÉTIEMBLE.  Connaissons- nous la Chine? Paris, Gallimard/Idées,
FAIRBANK, John K. (Edt.) Chinese Thought and Institutions. Chicago, The University of Chicago Press, 1973.
GRANET, Marcel. La civilisation chinoise. Paris, Albin Michel, 1994.
______________. La Pensée chinoise. Paris, Albin Michel, 1990.
JULLIEN, François. Procès ou création: une introduction à la pensée chinoise. Paris, Le Livre de Poche/Biblio, 1989.
LACAN, Jacques. Autres écrits. Paris, Du Seuil, 2001.
______________. Le Séminaire Livre XVIII, D´un discours qui ne serait pas du semblant, 1971. Paris, Du Seuil, 2006.
MALLARMÉ. Un coup de dés jamais n’abolira le hasard. São Paulo, Perspectiva/Signos, 1974. 
(LA) PLÉIADE. Philosophes Confucianistes. Paris, Gallimard, 2009.
(LA) PLÉIADE. Philosophes Taoïstes. Paris, Gallimard, 1993.
WRIGHT, Arthur F. Studies in Chinese Thought. Chicago, The University of Chicago Press, 1967. 

 

Lacan e o pensamento chinês segundo o seminário 19...ou pior

Severino Cabral

 

O sétimo capítulo do Seminário Livro XIX ... ou pior, “A parceira desvanecida” apresenta  uma exposição das mais densas da concepção lacaniana do seu teorema “Não existe relação sexual”,  que exige do leitor  acompanhá-lo de  forma vertiginosa ao interior  de sua teoria do Discurso analítico, até o “Há-um”,  onde se desenha a figura inaugural do seu último ensino.

De Aristóteles a Frege, da extraordinária utilização da teoria dos conjuntos e dos seus paradoxos, passando pela abordagem da sua teoria da linguagem, Lacan expõe suas teses sobre a “lógica da sexuação”, o gozo feminino, a inexistência do segundo sexo e a emergência do um, o Todo e o Não-todo.

 

Ao ler a “Parceira Esvanecida”, a sensação imediata é a de que os ouvintes do Seminário de Jacques Lacan talvez tenham, nesse dia, assistido a uma das suas mais inspiradas apresentações.

 

Para não faltar ingrediente especial ao tema, o “pensamento chinês” se introduz através de suas referências ao dualismo do Yin (essência feminina) e do Yang (essência masculina) presente na cosmologia chinesa desenvolvida no Yi JingO livro das mutações e muito especialmente ao uso dos termos que designam, em língua chinesa, a totalidade: Dou e Jie.

 

Nesse uso da singularidade da língua chinesa – quando cita a frase “mei ge ren dou chi fan” (todos os homens comem?) – Lacan busca especificar o que ele denominou pensar na “totalidade de que se trata como conteúdo” , relacionado ao “vazio do Outro”.

 

Chama a atenção do leitor o fato de que ele faça uso, neste capítulo de duas línguas, de cultura e civilização: o grego clássico e o chinês. Além, é claro, do universo da lógica e da filosofia matemática.

 

Bibliografia

- Jacques Lacan O Seminário Livro 19 ... ou pior. Rio de Janeiro : Zahar, 2012.
- Annales Musée Guimet, tome huitime: Le Yi: King; Livre des changements de la       dynastie des Tsheou. Traduit pour la premier fois en français par P.- L. Philastre. Paris.
-  Adrien Maisonneuve, 1992. 2v. Paris.
- Dicctionnaire français de la langue chinoise.  Institut Ricci-Kuangchi Press, Paris 1990.

 

POETAS E POEMAS CLÁSSICOS CHINESES PARA UMA LEITURA DE LACAN.

“Com o auxílio do que se chama escrita poética podem ter a dimensão do que é a interpretação analítica, (...) e na escritura chinesa podem compreender o que é a poesia”. 

Lacan, J. L’insu. (1977)

Mirta Zbrun

 

A leveza e a sutileza presentes na poesia chinesa implicam o exercício de trazer, para o presente, o que dos ancestrais não pode jamais ser esquecido.  O poeta chinês repete, em seus poemas, sempre os códigos poéticos já estabelecidos, os mitos e os ritos milenares, o estilo da poesia chinesa se transforma assim em irresistível, demonstrado na arte da caligrafia chinesa.  A poesia chinesa, assim como a pintura, evocam, irremediavelmente, o passado milenar. Desenhando a natureza que o circunda, montanhas, água, nuvens, numa misteriosa harmonia, o poeta, assim como o pintor transmite, na sua arte, o precioso relacionar-se do homem com seu caminho, seu Tao. Elementos comuns marcam o sentido do que se repete sem cessar no diálogo, homem-universo. Na pintura china nunca falta escrita, a que termina por compor a obra, e dar a ela seu marco.


Diz Lacan: “(...) é absolutamente certo que a escritura não é aquilo pelo que a poesia, a ressonância do corpo, se exprime. É surpreendente que os poetas chineses se exprimam pela escritura e que para nós o que é preciso é que tomemos na escritura chinesa a noção do que é a poesia. Não que toda poesia seja tal que a possamos imaginar pela escritura, pela escrita poética chinesa, mas talvez vocês sintam aí alguma coisa que seja outra, outra que aquilo que faz que os poetas chineses não possam fazer de outra forma senão escrever”. (Cf., Lacan, L’insu- que- sait l’une - bevue. Aula de 8 de março de 1977-inédito). 


Vale a pena lembrar que Lacan teve contato com a língua e o pensamento chinês através dos grandes nomes da sinologia francesa tais como Marcel Granet e Paul Demiéville, que dirigiu a École Pratique des Hautes Études, como também François Cheng, escritor e chefe de trabalhos no Centro de Linguística Chinesa da mesma École. Com este último, teve uma profícua parceria intelectual lendo e comentando textos clássicos em chinês, entre eles alguns representativos do melhor da poesia chinesa. Uma vez por semana, Jacques Lacan e François Cheng se encontravam para discutir e comentar especialmente instigantes textos de Laozi, Mengzi e Shitao.


Disto, temos conhecimento por um depoimento dado por Cheng à revista l’Âne, n. 48, e citado por Eric Laurent em sua participação no curso de Jacques- Alain Miller, de 10 de março de 1999, intitulada “El camino del psicanalista”.


No Brasil, encontramos poemas representativos da China clássica no livro “Escrito sobre Jade – Poesia Clássica Chinesa”, de Haroldo de Campos, uma edição bilíngue que se insere no projeto poético concretista do autor que, no prólogo, esclarece os desafios dessa reimaginação ou transcrição de poesia chinesa. Escreve Haroldo de Campos : “(...) procuro compensar os aspectos caligráfico-visuais de uma poesia monossilábica escrita por meio de ideogramas, adotando técnicas de espacialização gráfica da poesia moderna para dispor o texto no branco da página e usando, quase exclusivamente, a composição em caixa baixa, dispensada a pontuação habitual”.

 

OS POETAS E OS POEMAS CLÁSSICOS CHINESES*

 

SOBRE O AMOR

 

O poeta LI BAI
Adeus a um amigo que parte

 

As montanhas azuladas
bordejam as montanhas ao norte.
A água cristalina
contorna as muralhas ao leste.
Nesse lugar
nos separamos.
Você erva errante
os milhares de li.
Nuvem flutuante,
humores vagabundos,
sol que se vai, velhos amigos que se afastam,
nós dois nos acenando
na hora da partida.

 

O UM DA DIFERENÇA

O poeta DU FU
Três quadras

 

Dois corrupiões cantam
no salgueiro de jade.
Em fila, garças brancas
sobem para o azul.
Da janela abraço a oeste
cristas nevadas de centenas de outonos. 
Na frente da porta, um barquinho de Wu
e milhares de léguas.

 

SOBRE O HOMEM
O poeta WANG WEI
Alto torreão

 

No alto do Torreão,
para dizer adeus.
Rio e planície,
perdidos no crepúsculo.
Debaixo do poente,
o retorno de pássaros. 
O homem?
Sempre mais longe.


*Extraídos de Poemas Clássicos Chineses. Li Bai, Du e Wang Wei. Edição bilíngue.  L & PM POCKET. Santa Maria, RS, 2012.

 

 

 

CAPÍTULO VII – A PARCEIRA DESVANECIDA

 

TEMA I - LÓGICA DA SEXUAÇÃO: SUA GRAMÁTICA

 

Questão proposta por Lacan

Como algo chega ao ser falante pela sexualidade, a pergunta é: “o ser falante é falante por causa de alguma coisa que sucede com a sexualidade, ou, essa alguma coisa que sucede com a sexualidade é porque ele é falante?”.
Neste capítulo, Lacan exercita, com maestria, o ‘seu estilo’ ao apresentar o famoso tema por ele introduzido na leitura de Freud da “não existência da relação sexual”.


A fórmula lacaniana, num dos seus momentos teóricos mais criativos, expõe toda a complexidade da questão para o Discurso Analítico ao invocar noções e conceitos da topologia e lógica matemática para definir a “lógica da situação” e “a natureza do gozo feminino como Não-todo”. E, ao exercitar uma radical desconstrução do mito do “segundo sexo” com a descoberta da singularidade do existir na discórdia do “hum” e da “uma”, a resposta, tornada possível pela linguagem, da pergunta sobre a relação do Universal homem, com o universal, mulher.

 

A - 1ª Proposição

1ª. Não há relação sexual

“A base do que venho expondo a vocês há algum tempo, mais exatamente desde o ano passado, é muito precisamente, que não existe segundo sexo”.  Não existe esse outro sexo a partir da entrada da linguagem, é a tese lacaniana e a chamada heterossexualidade se esvazia como ser para a relação sexual.
-E é nesse vazio, que de alguma maneira é oferecido à fala, que se instala o Outro, esse vazio será o lugar do Outro, ai onde se inscrevem os efeitos da fala.

2ª.  O gozo feminino como Não- todo

A pergunta que se impõe é como universal homem se relaciona com o universal mulher, pelo fato de que existe a linguagem e, como no vazio deixado pela não relação se inscreve o Outro, Lacan acrescenta a ele um suplemento, a letra h para marcar esse Outro como vazio. Nesse sentido, acrescenta um h também ao Um, pelo que se deve compreender a dimensão do Hum (Hun).

B - 2ª Proposição

1ª. O Um e a Uma: discórdia.
Se não existe relação sexual, é “que a experiência do discurso analítico assinala para a dimensão da função fálica”, o Hum não é redutível ao termo masculino. (cf. p. 97).

 

2ª. O Universal só faz surgir para a mulher a função fálica da qual ela participa, ao querer arrebatá-la do homem ou ao querer lhe impor o serviço dela, no caso, ... ou pior, mas isso não universaliza a mulher. A raiz de não toda está no fato de ela encerrar o gozo diferente do gozo fálico, o gozo dito propriamente feminino que não depende do gozo fálico. Ela é não toda porque seu gozo é duplo, como o revelou Tiresias.

 

Tirésias: trata-se do profeta cego de Tebas, famoso por ter passado sete anos transformado em mulher. Certa vez ao ir orar encontrou um casal de cobras copulando e ambas voltaram-se contra ele. Ele matou a fêmea, e imediatamente tornou-se mulher. Anos depois, indo orar no mesmo monte encontrou outro casal de cobras venenosas copulando. Matou o macho e tornou-se novamente um homem. Por Tirésias ter se tornado tão ciente a respeito de ambos os sexos, ele foi chamado para decidir a questão levantada por ocasião de uma discussão entre Zeus e Hera sobre “se é o homem ou a mulher quem tem mais prazer na relação sexual”. Mas ele sabia que a sua decisão traria  sobre ele a ira do deus derrotado. Hera dizia que o homem é quem tem mais prazer, Zeus dizia que é a mulher. Tirésias decidiu a questão: "se dividirmos o prazer em dez partes, a mulher fica com nove e o homem com uma." Hera, furiosa por sua derrota, cegou Tirésias por vingança. Mas Zeus, compadecido e em recompensa por Tirésias ter dado a ele a vitória, deu-lhe o dom da previsão. Uma versão alternativa do mito de Tirésias conta que ele ficou cego ao ter visto Atena se banhando nua em uma fonte. Tirésias se faz presente no livro Édipo Rei de Sófocles, no qual ele descreve como é terrível deter o saber, quando este de nada serve a quem o possui. Há, ai, uma sábia e sutil revelação a Édipo, que, no desenrolar da história, saberá o verdadeiro significado nas entrelinhas dessas sábias palavras.

 

Autores citados:

Roman O. Jakobson (1896-1982). Pensador russo que tornou-se num dos maiores linguistas do século XX, pioneiro na análise da linguagem, sua influência é significativa na teoria lacaniana e a encontramos em axiomas que marcaram o primeiro ensino de Lacan, como: “O inconsciente está estruturado como uma linguagem”, retomado em diversas épocas de seu ensino. Tal influência foi assinalada por Jacques – Alain Miller na sua famosa formulação da teoria do significante.

 

René Thom (1923-2002). Matemático e topologista francês tratou especialmente da teoria da singularidade, tornou-se famoso na comunidade acadêmica e com o público em geral como fundador da teoria da catástrofe, que seria mais tarde desenvolvida por Erik C. Zeema.

 

Simone de Beauvoir (1908-1986). Escritora, filósofa existencialista e escritora. Escreveu romances, monografias sobre filosofia, política, sociedade, ensaios, biografias e uma autobiografia. “O segundo sexo” (Le Deuxième Sexe), escrito e publicado em 1949, é uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista, a autora analisa a situação da mulher na sociedade. O livro foi publicado no Brasil em dois volumes: "Fatos e mitos" é o volume 1e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. "A experiência vivida" é o volume 2 e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.

 

TEMA II – O ZERO E O UM: FUNDAMENTAÇÃO LÓGICA DA FUNÇÃO FÁLICA

Na abordagem dessa temática, Lacan deu continuidade ao seu exercício lógico ao avançar na reflexão sobre a função fálica e sua estrutura, na forma topológica da linguagem, e na elaboração sobre o vazio presente na teoria do zero na lógica de Frege e na estrutura da língua chinesa.

 

A - Proposições

1ª - A linguagem, a função fálica e sua réplica, p. 97. .Lacan acrescenta um h ao Outro, o Houtro e, em consequência, um h ao Um, temos assim o Hum, de maneira que não há meios de a relação sexual vir a se escrever em termos de essência masculina e essência feminina, pp. 97- 98.

2ª - O vazio da linguagem: o Yin e o Yang no pensamento chinês, p. 94; p. 98.
A escrita dessa relação que não se escreve, só pode ser escrita a partir de uma escrita muito específica, pela qual Lacan introduz a lógica e a topologia matemática, p. 98.

 

B - As proposições aristotélicas

Na lógica das Proposições, temos, em primeiro lugar, as quatro relações básicas que Lacan usa na formulação das relações entre o masculino e o feminino: negação; conjunção; disjunção e implicação.

 

Autores citados:

Aristóteles. Lógica.In: Obras.Aguilar Ediciones, Madrid, 1966 a 1969.

Apuleio. “O asno de ouro”.

Parménides. Platon, Diálogo. In: Obras completas. Aguilar Ediciones, Madrid, 1966 a 1969.

Referência na obra de Lacan:

No Seminário, Livro 8, A transferência, Lacan faz referência ao agalma socrático com o que ele tem de tão sublime que foi capaz de atrair o amor de Alcibíades e, dessa forma, o sujeito Sócrates veio no lugar do semblante, isso em razão desse Houtro. O que acontece entre ambos, não é a relação entre um e outro, senão é mais bem o amor ele mesmo, que entra em jogo. Não se trata da relação sexual porque ela não existe.

 

 

Organização do Seminário Internacional

“haun - Leituras do Seminário 19: ou pior” de Jacques Lacan

 

Diretor

Marcelo Veras

 

Organização do Seminário Internacional “haun - Leituras do Seminário 19: ou pior” de Jacques Lacan

 

Diretor
Marcelo Veras

Comissão Organizadora

Coordenadoras: Maria Josefina Sota Fuentes e Glacy Gonzales Gorski

Heloísa Prado Telles, Cleide Pereira Monteiro e Simone Souto

Comissão Científica
Coordenador: Jésus Santiago

Marcus André Vieira e Elisa Alvarenga

Boletim Haun

Editores: Glacy Gonzales Gorski, Cleide Pereira Monteiro e Maria Josefina Sota Fuentes
Colaboradores: Carla Serles, Patrick Almeida e Júlia Solano 
Diagramação: Bruno Senna
Logomarcas: Luiz Felipe Monteiro e Bruno Senna