21 de novembro 2013 - Hotel Panamericano - Buenos Aires - Calle Carlos Pellegrini 551

 

Boletim haun #003

DOWNLOAD

 

 

Editorial

Cleide Pereira Monteiro e Glacy Gonzales Gorski

 

Após explicitar a modalidade de trabalho do haun nos boletins anteriores iniciamos, neste número três, uma série de contribuições de colegas acerca da complexa relação que há entre o gozo e o Um tal como posto à prova por Lacan no Seminário 19. Escolhemos, como texto inaugural desta série, a contribuição do colega da ECF, Philippe La Sagna, que no texto “Introdução ao Seminário XIX, ... ou pior”, nos dá uma elucidativa direção sobre como prosseguir em nosso trabalho de investigação.


La Sagna recupera a importância que Lacan dá à lógica em seu desafio de retirar consequências do legado deixado por Freud a partir de outros aportes teóricos. Ao retomar a definição da lógica como “arte de produzir uma necessidade de discurso”, ele traz algumas passagens de Lacan, extraídas dos seus dois Seminários anteriores, o XVII e o XVIII, as quais vêm explicitar a “necessidade humana essencial” que surge do próprio discurso. O caminho tomado por este autor  vem nos deixar claro que, desde O avesso da Psicanálise, a estrutura de discurso não está referida à palavra, mas à escrita. O discurso como escrita nos serve não só para interrogar os efeitos da linguagem quanto ao que é da dimensão da relação sexual que não há. A escrita vem marcar, precisamente, o lugar desse real que não pode se escrever. 
 “De um discurso que não fosse semblante” ao “... ou pior”, o que se reafirma é um lugar vazio que vem assegurar que possa haver ali uma invenção de saber. E é precisamente a lógica que vem demonstrar o que se funda a partir da inexistência. É só com esta condição, a da inexistência, que temos possibilidade de engendrar uma necessidade; algo começará a existir - o Um que não cessa de escrever-se.

Por aí, vemos que temos muito a dizer sobre o aforismo “há-um” em nossas produções. Nesse sentido, vale a pena conferir a pesquisa realizada por Mirta Zbrun e sua equipe para o BIBLIÔ REFERÊNCIAS. Confira, neste número, as referências do capítulo IV e V do Seminário 19.

 

No próximo número, daremos prosseguimento à nossa investigação com a publicação dos primeiros textos recolhidos da produção dos cartéis. Quem ainda não iniciou sua pesquisa sobre o tema, ainda é tempo de fazê-lo; e aqueles que já estão com suas produções em dia, nos enviem o quanto antes para que sejam veiculadas neste boletim.


Assim, mais uma vez, convidamos a todos para escreverem textos de até 6.000 caracteres com espaços, que devem ser enviados para glacygorski@uol.com.br  e josefinasfuentes@gmail.com. Eles têm a função de preparar o terreno para o Seminário Internacional e para um futuro livro sobre o evento, tendo como referência os quatro eixos de trabalho que estruturarão o debate: argumento; disciplina do comentário; lógica do tratamento e perspectivas do conceito.


Lembramos, ainda, que até o dia 30 de agosto, a inscrição do Seminário Internacional da EBP poderá ser feita sem alteração no valor.

 

Consulte nosso site e garanta desde já sua inscrição.

 

Boa leitura!

 

 

Introdução ao Seminário XIX, ... ou pior de Jacques Lacan

Philippe La Sagna, psicanalista, membro da ECF

 

Na qualidade de humanos, nós estamos submetidos à necessidade. Lacan, no Seminário XIX, revisa um pouco o que representa, para nós, a necessidade. Ele retoma os dados freudianos à luz da lógica, a qual recebe uma nova definição: a arte de produzir uma necessidade de discurso. O necessário, para Aristóteles, é a impossibilidade que algo seja de outro modo. O seu contrário é a contingência. O impossível é, portanto, seu avesso.


Freud escreveu a Charles Baudouin: “Eu tenho dois deuses, Logos e Ananke”, “A inflexível razão e o destino necessário”. Um grego não podia acusar Ananke, mas deveria enfrentá-la com coragem. A Ananke era também uma divindade. Freud opôs a razão do discurso à necessidade do destino. Lacan se interessava, justamente, pela necessidade que surge não dos corpos (anatomia) ou do mundo, ou do destino, mas do próprio discurso. Ele redefine o discurso no Seminário XVII, como sendo, ao mesmo tempo, uma estrutura, um laço social e uma escritura da relação do sujeito ao gozo, à verdade, ao significante mestre e ao saber.


Existe uma necessidade de discurso, quer dizer, uma determinação e uma limitação que é própria do discurso, que é a necessidade humana essencial. Ela não está escrita no céu, nem nos corpos, mas no discurso entre vários, o que implica homens e mulheres, portanto, que não existe sem o sexo. 


Essa necessidade de discurso é algo que pode produzir uma lógica. “Eu proponho definir o objeto da lógica como o que se produz da necessidade de um discurso”. Quando Lacan, a partir do Seminário XVII, introduz a estrutura do discurso, ele opera uma tomada de distância com a palavra e a verdade. A estrutura do discurso acentua a escrita mais que a palavra. O discurso é uma escrita. O seminário de Lacan que marca esta prevalência da escrita é o Seminário XVIII. É, por sinal, o seminário que inaugura a trilogia phrasal onde se insere  ... ou pire: De um discurso que não fosse semblante ... ou pior ainda.

  
A questão da escrita, aqui, é multideterminada. Primeiramente, através de uma lógica que apareceu no século XX como uma nova escrita lógica nas linguagens formais, com Boole e Frege. Lacan pôde dizer (p.64), no Seminário XVIII, “Nada além da escrita é o que constitui a lógica”. Em seguida, ele insiste no fato de que a escrita não é a linguagem. Por que isso é essencial? É bem porque a escrita nos vai fornecer o meio de interrogar a linguagem e seus efeitos: “É do escrito que se interroga a linguagem”.


 Mas, não existe só a linguagem que é interrogada a partir do escrito; há, também, a sexualidade. A relação sexual é algo que não se escreve. Essa lógica da ausência da relação sexual é a estrutura subjacente, em relação ao que pode se adicionar e que é de outra natureza: a lei sexual. A lei sexual é o que parte de uma interdição sustentada em Freud por uma perspectiva histórica e mítica desenvolvida em Totem e Tabu que é aquela que provém do assassinato do pai.


 A lei sexual parte da morte do pai para fundar a interdição e a sociedade em um só gesto, proibindo o gozo de todas as mulheres. Essa lei caricatural preexiste à autorização edipiana que permite, a cada um, o acesso a quase todas as mulheres salvo uma, a mãe. Lacan mostrou, no seu Seminário XVII, a necessidade de retomar o Édipo freudiano a partir desse mito originário.


Totem e Tabu descrevem, de maneira mítica, a existência de um pai originário que, pela sua própria impossibilidade, inscrita no seu assassinato, coloca a inexistência de um universal, de um todo de mulheres e pela inexistência dA  mulher toda. “Não existe todas as mulheres” é simplesmente a negação da proposição mítica que postula a existência de um pai que possuiria todas as mulheres. “Não existe a relação sexual”; com isto, ressoa a ideia de que “Não existe todas as mulheres”. E é, desta afirmativa: “não existem todas” que vai se escrever, em seguida, o “não toda” de uma mulher, cada uma sendo “não-toda”.


Vê-se, então, que o ressorte da escrita é também o que não se escreve. A escrita deve partir do real, que não pode se escrever, em direção ao símbolo e não escrever o real com o símbolo. A escrita do real é o real que escreve; mais genericamente, a escrita se dá através dos buracos que se faz no escrito para marcar o lugar do que não pode se escrever. Pois bem, esse Seminário ... ou pior começa, justamente, por escrever, com três pequenos pontos, um buraco na escritura (...) ...ou pior. Sobre esse seminário e seu título, Lacan pode escrever: título de uma escolha. A escolha de partir do que não se escreve e de ver o escrito a partir dos buracos. 


Quer dizer que se parte de um lugar vazio. Esse lugar vazio permite “penetrar na natureza da linguagem”. A natureza da linguagem é o que se produz a partir do simples jogo de um lugar vazio. Na perspectiva saussureana, estrutural, o que define o significante é que ele pode vir no lugar de qualquer outro: “É a sua substituibilidade. Esquecemo-nos de que é necessário, antes de tudo, que haja esse espaço vazio. E, por sinal, é essa função do lugar que guia a perspectiva dos discursos. O que a perspectiva linguística estrutural se esquece de produzir é a necessidade desse lugar vazio, ou de sua possibilidade. Ela deixa o cuidado de produzi-la, então, à lógica.
Lacan produziu o dizer que permite fundá-la: não existe relação sexual é, aqui, o dizer de Freud que cava um lugar ausente, aquele do Outro. Ou seja, ele diz que existe um laço entre o dizer e esse buraco e que é isso que não se inscreveria. O problema é que, desse modo, este dizer é uma verdade que só pode se sustentar no fato de que, ao se querer dizer outra coisa, diz-se o pior. É isso, ou pior... É como a democracia: é isso, ou pior...


Esse lugar vazio nos fornece o lugar e a dimensão que nos permitirá, em seguida, escrever, nesse espaço vazio, uma variável, por exemplo, a variável “x”. E o fato de poder alojar uma variável em um lugar, é o que chamamos escrever uma função. E a variável vai sempre proceder de uma escritura que é para todo “x”. É isso, e nada mais, que chamamos de função. Frege foi o primeiro a escrever essa função para a lógica numa ideografia. Essa função na psicanálise é a função fálica que permite situar a significação (Bedeutung), ao mesmo tempo em que coloca um limite pela castração. 


Lacan quer introduzir uma nova lógica que não apaga a precedente, mas que parte do real. O importante é que ela possa se aproximar “do que pode haver de real a determinar a linguagem”.

 

Tradução: Glacy Gonzales Gorski

Revisão: Marcelo Veras

 

 

BIBLIÔ REFERÊNCIAS

 

CAPÍTULO IV

TEMA 1- A Arte de Produzir uma Necessidade de Discurso

 

A) O (0) e o número 1

 

Autores citados:

Friedrich L. G. Frege, (1848- 1925) matemático, lógico e filósofo alemão publicou, em 1884, a  obra “Die Grundlagen der Arithmetik” (Fundamentos da Aritmética) na qual  ele  interroga logicamente em que concerne o estatuto do número.
Leopold Kronecker,  (1823-1891) matemático alemão, cuja frase “Deus fez os números, todo o resto é obra do homem”, serve a Lacan para resgatar o trabalho de Frege ao se opor à descoberta da Aritmética como obra que pretende dar conta dos números inteiros.

B) A inexistência, o sintoma e a verdade

A inexistência: ela não é o nada, mais, certo número que faz parte dos números inteiros, porque não há teoria dos números inteiros se não se compreende o que vem a ser 0.. N, o que vem a ser o número 0.
A inexistência e o nada.

Autores citados:

Karl Marx: citação deste autor por Lacan (p.49) se refere à problemática da ‘leitura sintomal’ tratada por Louis Althusser em seu clássico estudo que é o Prefácio “Du ‘Capital’ à La philosophie de Marx”. François Maspero, Paris, 1967, In: Lire Le Capital. Tome I. A sua crítica da teoria do valor em Adam Smith é retomada na concepção althusseriana da leitura sintomal.
Gottfried W. Leibniz: Leipzig (1646-1716).

Referências na obra de Lacan:

- “A significação do falo”, (1959). (Die Bedeutung des Phallus). Escritos, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1999. A significação (Bedeutung) é oposta ao sentido (Sinn) que para Frege se refere ao sentido de uma proposição, ao que a fala denota, ou seja, a significação como denotação.

- O leitor lerá com proveito o Seminário XVIII “De um discurso que não fosse semblante”, sobretudo o capítulo 9 “Um homem, uma mulher e a psicanálise” – onde Lacan evoca a significação em relação ao real em oposição ao sentido. Afirma ainda que falar de “significação do falo” é um pleonasmo, pois não há na linguagem outra significação que não seja o falo.

Lacan, J. “O Aturdito”, Outros Escritos, Rio de Janeiro, JZE, 2003, pp. 491-492. Lacan afirma que a dialética do ser/ter o falo é a função que faz suplência à inexistência da relação sexual.

 

SEGUNDA PARTE

O OUTRO: DA FALA À SEXUALIDADE

 

CAPÍTULO V – TOPOLOGIA DA FALA

TEMA 1- Da Via da Lógica dos Quatro Discursos aos  Sentidos da Escritura

 

É no Seminário 17, “O avesso da psicanálise” (1969-70), que Lacan desenvolve o que seriam os quatro discursos: o do mestre, do universitário, da histérica e do analista. Ao mesmo tempo, podemos pensar em que a topologia do discurso se repousa: sob a função dos quatro termos da réson de ser (S, S1, S2, a), em relação ao que se poderia, em seguida, atribuir sentido, ou seja, os quatro lugares do matema do discurso que Lacan apresenta em quatro termos: verdade; semblante; gozo e mais-de-gozar.


Podemos pensar como nos sugeriu François Regnault, acerca dos quatro pontos cardeais da topologia do discurso com os Quatro sentidos da Escritura. Ou seja,os quatro níveis de leitura que propõem tanto o judaísmo, quanto o cristianismo dos textos sagrados. Isso responderia, de certa maneira, à pergunta “de onde viria o sentido”? Na tradição católica, por exemplo, os quatro sentidos se dividem entre o que é literal (o sentido literário ou histórico), o que é espiritual e o que se interpreta e se reparte em três: alegórico (sentido espiritual que se refere à igreja), tropológico (sentido espiritual em referência à alma), anagógico (faz com que se pense nos céus, nas coisas divinas).
Segundo Jacques-Alain Miller, é na interpretação da Escritura que se formou a distinção do significante e do significado. Desde a Idade Média, a interpretação da Escritura foi ensinada a partir do quarteto, da distinção dos quatro sentidos – consagrados desde o século VII.
Esta tradição remonta aos estoicos, quando já se fazia o uso do duplo sentido, do literal e do espiritual. São Jerônimo, padre e apologista cristão ilírio e tradutor da Bíblia do grego e do hebraico para o latim, repartia o sentido entre a letra e a significação. Ferdinand de Saussure, aliás, se serviu, inicialmente, desta tradição renovando-a – tanto a partir de São Jerônimo quanto de Santo Agostinho que sintetizam a exegese medieval numa renovação de São Paulo de que “a letra mata (i. e. a letra morta das sinagogas hebraicas e que não reconhecem a encarnação do espírito quando ele se manifesta), enquanto que o espírito eleva”.


À guisa de exemplo, podemos dizer que a interpretação analítica é uma interpretação literal, ao passo que a interpretação da psicologia analítica de Carl Jung se aproxima dos métodos da exegese medieval, a partir, e.g., dos traços presentes na interpretação arquetípica.
Miller lembra que, mesmo que Lacan não tivesse procurado suas referências a respeito da interpretação na exegese cristã, ele cresceu dentro desse meio e sempre estimou, aliás, os jesuítas que pertenciam à sua Escola e que eram da época do cardeal Henri de Lubac – um dos grandes nomes da teologia jesuíta francesa o qual realizou importantes estudos sobre a exegese medieval. Em relação à psicanálise, Lacan encontra suas referências na tradição de Freud e na sua relação particular à letra quando, então, fundou sua interpretação sobre a psicanálise a partir da leitura que ele fez da obra de Freud – levando em consideração as bases do estruturalismo estabelecido, e. g., por Lévi-Strauss e os estudos dele sobre a combinatória dos mitemas que, em si mesmo, são uma interpretação, dentro do campo da antropologia. Acrescentamos ainda a releitura realizada por Lacan das contribuições da linguística estrutural de R. Jakobson e F. de Saussure.


A partir dessa leitura cruzada de referências, podemos afirmar, com Miller, que o significante da fala no Outro S(?), pode ser lido como o significante da alegoria barrada.

 

Autores citados:

Henri Sonier de Lubac foi um jesuíta, teólogo católico e cardeal francês.

Roman Jakobson foi um pensador russo que se tornou um dos linguistas mais influentes do século XX e que é considerado um dos primeiros teóricos da análise estrutural da linguagem, da poesia e da arte. Suas proposições a respeito dos dois eixos da linguagem, eixo sintagmático e eixo paradigmático, influenciaram profundamente o estudo das afasias, assim como o estudo das figuras da retórica – principalmente no que tange à polaridade da metáfora e metonímia – é de onde Lacan os extraiu. Ele também considera as contribuições da retórica que os reconhece como mecanismos pertencentes à mecânica da linguagem, através da leitura realizada por Lévi-Strauss com a sua antropologia estrutural que distingue as relações de parentesco e as relações de sucessão, tal como Jakobson tivera ordenado os fonemas.

 

Referências:

Carl Jung. Métamorphoses de l’âme et ses symboles (1912), Coll. Références, 1950.

Aula de 27 de março de 1985 do curso “1, 2, 3, 4” de J.-A. Miller quanto à articulação do significante da falta no Outro S(?) e com a interpretação analítica.

Henri de Lubac. Exégèse médiévale, les quatre sens de l'écriture, Paris, 1959-1964.

Lévi-Strauss. Antropologia estrutural, Ed. Cosac Naify, 2008.

Roman Jakobson. Essais de linguistique générale (1 et 2), Éditions de Minuit, 1963.

 

A. A discussão em torno da origem da linguagem:

 

Autores citados:

Jean-Jacques Rousseau foi um escritor francófono, filósofo e músico suíço. Ele entra na história das ideias, sobretudo com seus curtos ensaios “Discurso sobre as ciências e as artes” (1750) e “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens” (1755), além do “Contrato social” (1762). Ele defendeu a oposição do estado de natureza, que traria a felicidade da humanidade, ao estado social, fonte de insatisfações generalizadas. É um dos maiores filósofos do Iluminismo e uma influência intelectual reconhecida em relação à Revolução Francesa.

 

Referências:

Jean-Jacques Rousseau. “Ensaio sobre a Origem das Línguas” (1781). Tradução de Fulvia M. L. Moretto. Campinas: Editora da UNICAMP, 1998, 198pp.

 

B. Fala, dizer e ato.

 

Uma das múltiplas referências implícitas no ensino de Lacan relaciona-se à teoria dos atos de linguagem, considerados como atos performativos.


Um dos pontos fortes desse “encontro” se dá justamente quando Lacan desenvolve, em 1967-68, a temática do ato do analista, a passagem do analisante à posição de analista, durante o seu Seminário O ato analítico. O ato analítico, tal como Lacan o desenvolveu, é subordinado ao discurso analítico e se encontra numa perspectiva crítica dos atos de linguagem de John Austin.


Pode-se pensar o estatuto do dizer como se estivesse no centro do ato analítico e em relação à ideia de que é o analisante que interpreta. O analisante sustenta seu discurso a partir da garantia do sujeito suposto saber – atrelado ao seu efeito de verdade. Essa passagem do analisante ao analista seria justamente o lugar de um dizer que se sustentaria sem garantias do Outro. O doravante analista se encontraria no ponto onde ele se sustentaria de um dizer enquanto tal. Ou seja, de um dizer performativo e que inscreve o ato analítico como um modo performativo: um ato de puro significante, em que algo se realiza, toca o gozo e o modifica.


No capítulo V do Seminário XIX vemos, mais uma vez, como Lacan se utiliza da concatenação de Austin quando afirma que “uma fala que funda o fato, é um dizer”, logo, é um ato de linguagem.


No seu texto “O aturdito”, Lacan resume, em uma única frase, a relação entre o dizer, fazer e o lugar da enunciação: “que se diga resta esquecido por trás do que se disse no que se ouve”.

 

Autores citados:

John Langshaw Austin foi um filósofo inglês nascido no início do século XX e um dos maiores expoentes da filosofia analítica. Um dos principais temas que ele trabalhou relaciona-se ao sentido em filosofia. Um dos maiores representantes da filosofia da linguagem ordinária (corrente de pensamento inspirada, sobretudo, no trabalho de Ludwig Wittgenstein), a sua teoria dos atos de linguagem foi um grande marco na sua elaboração teórica. Posteriormente, ela foi retomada, sobretudo por John Searle.

Referências:

Cf. a intervenção de Éric Laurent no curso de J.-A. Miller “Coisas de fineza em psicanálise”, aula de 25 de março de 2009.

John L. Austin. “Quando dizer é fazer”. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.

Jacques Lacan. O Aturdito, in Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 448 – 497.

 

C. Função da fala, estrutura da linguagem...

 

Lacan, no capítulo XV “A presença do analista”, do Seminário XI, fala da nova aliança entre a função da fala e a estrutura da linguagem, que trata do gozo como impossível a se negativizar: o falo simbólico, significante do gozo e que se encontra para-além da castração. Ou seja, a função da fala se encontra ligada à estrutura da linguagem, mas também à substância do gozo. Esse tema da presença do analista, certamente foi evocado por Lacan como uma crítica ao então recente livro de Sacha Nacht “La présence du psychanalyste”.

 

Autores citados:

Sacha Nacht foi um psicanalista francês e antigo presidente da Société Psychanalytique de Paris (SPP) em 1949. Outrora amigo muito próximo de Lacan, Nacht foi um dos principais personagens que combateu Lacan e o que ele considerava “os desvios da sua prática e da sua formação”.

 

Referências:

Cf. Jacques-Alain Miller. Coisas de fineza em psicanálise”, aula do dia 6 de maio de 2009.

Jacques Lacan. Sobre a questão do rabisco analítico em que se podem ler todos os sentidos que se quiser até o mais arcaico, pode-se ler com proveito o Seminário, Livro XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, capítulo XIX “Da interpretação à transferência”, onde Lacan afirma que a interpretação não é aberta a todos os sentidos. A interpretação é uma via que faz surgir um significante irredutível e que o sujeito está sujeitado.

Sacha Nacht. La présence du psychanalyste. Paris, PUF, 1963.

 

D. … função fálica, referência, denotação, existência

 

Lacan desenvolve, nesse capítulo, reflexões sobre a função fálica, ou seja, ele esclarece o fato de que o falo denota o poder de significação (ou homem ou mulher), e isto tem direta relação com seu texto de 1958 “A significação do falo”. Lembremos, aqui, que o termo Bedeutung, que se encontra no título da “Significação do falo”, é uma alusão ao termo “referência” em Frege – e desenvolvido sob os auspícios da “denotação” em Russel.

 

Autores citados:

Os principais pontos da teoria de G. Frege são: a formalização sistemática; a análise de frases complexas; a análise de quantificadores; a teoria da demonstração e da definição, assim como a análise dos números.
Enquanto que um dos criadores da filosofia analítica tem, como principais textos: “O que é uma função?” (o que denota uma função: a noção de expressão de cálculo e a noção de variável), “Função e conceito” (um conceito é uma função cujo valor é um valor de verdade) e “Sentido e Referência” (Über Sinn und Bedeutung). Este último texto é considerado como um dos textos fundadores da filosofia analítica.
A Bedeutung se traduz, então, por referência, ao que se denota e ao que se aponta em relação a uma existência, e que se encontra em relação ao real.
Já o Sinn é efeito de sentido, a significação, o que é da essência, o que outorga atributos a alguma coisa.

Bertrand Russell foi um matemático, lógico e filósofo. Ele é considerado um dos mais importantes filósofos do século XX. Juntamente com Frege, Russel é um dos fundadores da lógica contemporânea. Seu texto “Da denotação” é considerado como um dos artigos mais influentes de todo o século XX, onde ele tenta, de acordo com J.-A. Miller, extrair, de todo o enunciado, o ato referencial.

 

Referências:

Bertrand Russell. Os pensadores. Ensaios escolhidos. Da denotação (1905). Abril Cultural, 1978. (pp. 03 - 14).

Gottlob Frege. “Sobre o sentido e a referência” (1892). In: ALCOFORADO, P. Lógica e filosofia da linguagem. São Paulo: Cutrix, 1978, 160 p.

Jacques Lacan, O Seminário, livro XVIII, De um discurso que não fosse semblante, capítulo IX “Um homem e uma mulher e a psicanálise”.

Cf. também a esse respeito o curso de Jacques-Alain Miller « L’Un-tout-seul », sobretudo a aula de 16 de março de 2011, na qual Miller diz que o que está como referência em Frege, denotação em Russel, para os analistas está a existência.

Éric Laurent. « Trois énigmes : le sens, la signification, la jouissance ». La Cause freudienne, 02/1993, n°23. - pp. 43-50.

 

Tema 2 – Escrita Chinesa e sexualidade

 

Segundo Dr. Severino Cabral, professor-pesquisador do Instituto Brasileiro de Estudos de China Ásia-Pacífico (IBECAP), Robert Van Gulik foi um diplomata holandês, conhecido como grande erudito em questões sinológicas e se tornou célebre como autor das “Enquêtes du juge Ti”, quando era embaixador no Japão em 1949.


Nesse período, ele descobriu, num antiquário em Tóquio, os clichês originais de um álbum de desenhos representativos da arte erótica da época Ming. Publicou-a numa edição especial, limitada aos especialistas, acompanhada de um prefácio de sua autoria, em 1951, com o título de “Estampes érotiques en couleurs de la période Ming, avec un Essai sur la vie sexuelle des Chinois de la dynastie Han à la dynastie Tsing, 206 av. J.-C.-1644”, em 3 volumes.


O interesse despertado pela obra e as questões que suscitaram entre os orientalistas, principalmente Joseph Needham, levaram Van Gulik a estender o seu estudo da cultura erótica ao conjunto da história chinesa, desenhando um amplo quadro sociológico e antropológico. O livro resultante desse estudo foi publicado em inglês, no ano de 1961, com o título de "Sexual Life in Ancient China: A Preliminary Survey of Chinese Sex and Society from ca. 1500 B.C. till 1644 A.D". Leiden, Pays-Bas, E.J. Brill. Posteriormente, ele foi traduzido para o francês e publicado pela Gallimard na "Bibliothèque des Histoires", em 1971 e, em 1977, na coleção Tel da editora Gallimard, com o título de “La vie sexuelle dans la Chine ancienne”.


Seu estudo tece considerações sobre a cultura erótica chinesa e a influência do confucionismo, taoísmo e budismo – que foram amplamente tratadas nas várias épocas da história chinesa.


Fascinado pelos costumes sexuais dos povos que ele estuda, Van Gulik retraça o histórico da literatura erótica chinesa desde os primórdios assim como sua evolução ao longo da história. A literatura erótica começa com os manuais de educação sexual, depois com os livros de conotação médica para, finalmente, durante a era Ming, desembocar no desenvolvimento da literatura e das estampas eróticas e pornográficas.


Por exemplo, uma das diferenças fundamentais entre a concepção ocidental da sexualidade e a antiga concepção chinesa é de que esta última considera o ato sexual oriundo de uma mística: união entre o céu e a terra, dualidades cósmicas, harmonia universal pela fusão dos contrários, dos elementos masculinos e femininos (como presente no “Livro das Mutações”, no Yi-King e sua concepção da interação do yin e do yang tendo como resultante o Tao – A Via ou a Ordem suprema), etc.

 

Referências:

Jacques Lacan. Cf. O Seminário, Livro XVIII, De um discurso que não fosse semblante. Sobretudo os capítulos III, IV e V nos quais aborda questões relativas à escrita, fala e verdade.

Robert Hans Van Gulik.La Vie sexuelle dans la Chine ancienne, trad. Louis Évrard, Gallimard, « Bibliothèque des histoires » no 3, 1971, rééd. Coll. « Tel ».

 

A. André Gide: sexualidade e perversão

 

Referências:

Jacques Lacan. A juventude de Gide. In. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

Jacques-Alain Miller. Curso a Orientação Lacaniana, “Sobre o Gide de Lacan”:

- Rumo a um significante novo; Orientação lacaniana: Sobre o Gide de Lacan; Direitos humanos ... / COLLECTIF. Opção Lacaniana /Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, 08/1998, n°22. - 106 p.
- Algumas reflexões sobre o Ego; Orientação lacaniana: Sobre o Gide de Lacan; O mal - estar da civilização ... / COLLECTIF. Opção Lacaniana /Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, 06/1999, n°24. - 77 p.
- Acerca del Gide de Lacan: fragmento de un seminario de lectura. Malentendido / Revista en el Campo Freudiano, 06/1990, n°7. - 89 p.

Philippe Hellebois. Lacan lecteur de Gide. Editions Michèle, 2011, pp. 155

 

B. Objeto a e causalidade

 

Sobre o objeto a como causa do desejo, o leitor poderá ler com proveito a teoria aristotélica da causalidade. Para-além do que precederia o efeito, a causa, segundo Aristóteles, é uma noção metafísica complexa que se distingue em quatro tipos: causa material; causa formal; causa motora ou eficiente e causa final. Lacan designa, a cada termo, o campo da psicanálise, da ciência, da magia e da religião respectivamente.
Cf. o queRené Descartes desenvolve, na sua terceira Meditação, é o princípio de causalidade e a prevalência da causa eficiente – e inscreve uma descontinuidade entre a causa e o efeito. Isto servirá a Lacan para opor a causa e a lei.

Referências:

Cf. Jacques Lacan. “A ciência e a verdade”. Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

 

TEMA 3- A clivagem do muro

 

Autores citados:

Sobre a clivagem do muro: {discurso, fala e linguagem | ciência, números, função e topologia}, mais uma vez o leitor poderá se reportar com proveito ao curso de Jacques-Alain Miller e a distinção que ele desenvolve entre o ser e a existência e sua relação com a entrada do Um.

René Thom foi um matemático francês, fundador da teoria das catástrofes. Recebeu, em 1958, a medalha Fields, prêmio Nobel das matemáticas. Lacan o cita em relação ao uso que ele faz das superfícies matemáticas – a exemplo da dobra.

Chaïm Perelman é considerado o fundador da “Nova Retórica”. Nascido na Varsóvia, ele emigrou para a Bélgica em 1925. Até 1978, ele ensinou lógica, moral e metafisica na Université Libre de Bruxelles. Suas pesquisas se inscrevem, majoritariamente, no âmbito do direito, da retórica e da argumentação. Ao renovar com a retórica aristotélica, Perelman apresenta seu texto mais célebre, na  obra “Tratado da Argumentação” (1958), escrito em conjunto com Lucie Olbrechts-Tytec.
Este retorno à retórica argumentativa coincide com a volta do interesse pelas figuras ou tropo – que suscitou o nascimento de uma “nova retórica” das figuras, ao nível do desenvolvimento da poética e da semiótica como, por exemplo, em Roland Barthes.
Esta referência a Perelman está presente no ensino de Lacan desde o seu texto “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”. Segundo Jacques-Alain Miller, pode-se entender a argumentação de Lacan durante seus Seminários, não apenas como uma argumentação lógica, mas, sobretudo, como uma argumentação de orador (rhéteur), como defendida por Perelman.

 

Referências:

Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca. Tratado da Argumentação – A Nova Retórica. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1996.

A respeito da dobra, cf. Gilles Deleuze “A dobra. Leibniz e o barroco”, Papirus, 2011.

Pesquisa realizada por Mirta Zbrun, Luciana Castilho de Souza e Patrick Almeida.

 

 

 

Organização do Seminário Internacional “haun - Leituras do Seminário 19: ou pior” de Jacques Lacan

 

Diretor
Marcelo Veras

Comissão Organizadora
Coordenadoras: Maria Josefina Sota Fuentes e Glacy Gonzales Gorski


Heloísa Prado Telles, Cleide Pereira Monteiro e Simone Souto

Comissão Científica
Coordenador: Jésus Santiago


Marcus André Vieira e Elisa Alvarenga

 

Boletim Haun


Editores: Glacy Gonzales Gorski, Cleide Pereira Monteiro e Maria Josefina Sota Fuentes
Colaboradores: Carla Serles, Patrick Almeida e Júlia Solano