EBP Debates #008

 

Editorial

Em continuidade com o último DR, a seção EBP – Debates propôs a alguns colegas mais um esforço de tradução do título do Seminário 24 de Lacan, “L´insu que sait de l´une-bévue s´aile à mourre”. Como explicitado anteriormente por Marcelo Veras, trata-se de dar consequência ao desafio lançado por Éric Laurent em sua participação no seminário haun da EBP, realizado em Buenos Aires durante o Enapol de 2013: “pensar coletivamente ideias para o nome do Seminário de Lacan no Brasil”.


Neste número, vocês encontrarão as sugestões, seguidas de justificativas, de Elza de Freitas, Luiz Henrique Vidigal, Luis Francisco Camargo, Louise Lhullier, Sérgio Laia e Yolanda Vilela. As contribuições de Terezinha Prado e Romildo do Rêgo Barros podem ser acessadas na seção EBP-Debates #7 no Boletim DR, de dezembro de 2013.

 

Como vocês podem conferir, as assonâncias do título em francês, que trazem numerosas dificuldades de tradução, produzem por sua vez ressonâncias em português. O desafio foi lançado e permanece sem consenso, é claro! Deixemos então que fale a língua de cada um!

 

Frederico Feu e Paula Borsoi

 

 

Comentários:

 

Sérgio LaiaSérgio Laia*

 

ANÁLISE E TRADUÇÃO DO TÍTULO DE UM SEMINÁRIO DE LACAN: L’INSU QUE SAIT DE L´UNE-BÉVUE S’AILE À MOURRE

 

“O objetivo de toda arte não é algo impossível? O poeta exprime (ou quer exprimir) o inexprimível, o pintor reproduz o irreproduzível, o estatuário fixa o infixável. Não é surpreendente, pois, que o tradutor se empenhe em traduzir o intraduzível”
(Paulo Rónai, Escola de tradutores)

 

No final do ano passado, quando a Diretoria da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), retomando uma provocação formulada por Éric Laurent no último Seminário Internacional dessa Escola em Buenos Aires, convocou-nos a propor traduções para o título do Seminário 24 de Lacan (1976-1977), fiquei tentado a me arriscar. Entretanto, compromissos já assumidos e a costumeira correria de fim-de-ano me impediram, não sem pesar, de apresentar minha contribuição.  Porém, no início de fevereiro deste ano – sem que eles soubessem desse meu pesar – um convite de Frederico Zeymer Feu de Carvalho e Paula Borsoi me permitiu assumir, agora e aqui, o risco que as atribulações do último dezembro me impediram de enfrentar. Sou grato, a esses colegas, pela renovação dessa chance.

 

Acaso e encontro

Após ler, em A Diretoria na Rede, as opções e os comentários que Teresinha Prado e Romildo do Rêgo Barros apresentaram à tradução do título L’insu que sait de l´une-bévue s’aile à mourre1, fui primeiro consultar o verbete mourre no prolífico Le Grand Robert (1984-2001). Quanto ao significado, nada encontrei de diferente em relação ao que já havia sido destacado nesses comentários: mourre, segundo esse dicionário, é “um jogo de acaso no qual duas pessoas abrem rápida e simultaneamente certo número de dedos gritando uma cifra que pode exprimir esse número”, de forma que o ganhador é quem “apresenta a cifra certa” – trata-se de um jogo que evoca a brasileira “porrinha”. Sem ser por esse viés do significado, a surpresa apareceu graças a duas citações literárias que Le Grand Robert (1984-2001) apresenta em tal verbete.


A primeira, de Antoine Furetière, escritor francês do século XVII, conjuga o jogo da mourre com o amor e – eis o que me interessa ainda mais destacar – marca o quanto a afirmação certa sustentada concomitantemente por dois jogadores ou dois amantes é obra do acaso: “quando um dizia sim, o outro dizia não, isso durou tanto tempo que eles foram quase despachados, até que, como jogadores da mourre, que só concordam por acaso, disseram sim, os dois, ao mesmo tempo”. Com essa citação, podemos perceber que a proximidade entre mourre e amour (“amor”), da qual Lacan (1976-1977a e 1976-1977b) se vale no título do Seminário 24 e, como procurarei localizar, em outros momentos anteriores de seu ensino, tem tradição na língua francesa. Além disso, a passagem de Furetière ainda me permite articular tal proximidade com a surpreendente saída concomitante dos três prisioneiros na resolução do célebre sofisma apresentado por Lacan (1945) no seu escrito sobre o tempo lógico. Como essa saída não deixa de ter relações com o que se passa no momento de conclusão de uma análise, o título do Seminário 24 também me parece apontar para o que acontece em um fim de análise.


Ainda mais surpreendente é a segunda citação literária que podemos ler no verbete mourre em Le Grand Robert (1984-2001). Afinal, ela é proveniente de Apollinaire, caro a Lacan (1964, 1965, 1971-1972). Nesse dicionário, a citação não é da peça As mamas de Tirésias, evocada nos Seminários 11 e 19, nem do pungente poema Il me revient quelquefois” 2, de onde Lacan (1965) extrai a conjugação do verbo doer, douloir, no presente indicativo e na primeira pessoa do singular (je deux, “eu doo”) com o substantivo deux, “dois”, para se referir à dor que o par, o dois, impõe à Lol V. Stein no arrebatador romance de Duras. Trata-se de uma citação de um dos poemas de Álcoois, onde Apollinaire (1913) reitera o amálgama, quanto aos humanos, entre os jogos do amor e da mourre (que o Mário Laranjeira, tradutor brasileiro se dá a liberdade poética de transmutar em “mora” sem que, no entanto, esse termo, em português, inclua o jogo da mourre entre seus sinônimos):
 
“Os homens sabem tanto em jogo como o amor e a mora
O amor jogo de umbigos ou o jogo do gansão
Mora jogo do número os dedos ilusão”

 

Pistas em Lacan

Já na primeira aula do Seminário 24, Lacan (1976-1977a) procura elucidar o título que lhe deu. Mais precisamente, dedica-se à primeira frase que o compõe: L’insu que sait de l’une-bévue... De início, ressalta que, em l’insu que sait, temos um equívoco porque essas palavras designam uma espécie de “não-saber” ou de “insabido” (insu) “que sabe” (sait). Ora, como pode haver saber em uma ausência de saber? – é esse tipo de questionamento que nos leva a escutar, nessas palavras, um equívoco. Em seguida, Lacan (1976-1977a) destaca que “une-bévue é também uma boa tradução para “Unbewusst”, ou seja, “inconscientemente”, valendo-se aqui da proximidade fônica entre une-bévue (“mancada”, “deslize”, “tropeço”) e certo modo de os franceses pronunciarem Unbewusst. Cita, então, sonho, ato falho e dito espirituoso (trait d’esprit) como exemplos de une-bévue.


Porém, se a princípio essa primeira frase do título parece evocar Freud, uma distância de Lacan se esboça em seu questionamento sobre por que a análise dos sonhos teria que se valer de acontecimentos da vigília ou a análise de um ato falho implicaria o que transcorreu durante o dia. Essa distância se explicita quando Lacan (1976-1977a) afirma: “com esse insu-que-sait de l’une bévue, tento introduzir alguma coisa que vai mais longe que o inconsciente”. Em suma, o título do Seminário 24 não indica propriamente o que se manifesta inconscientemente, e isso se esclarece à medida que, já ao longo da primeira aula, Lacan vai falar de identificação e, sobretudo da identificação com que se depara em um fim de análise: um analisante acaba descobrindo que vai “se identificar, mesmo tomando suas garantias por uma espécie de distância, com seu sintoma” e corporifica um “savoir faire com”, um “saber se virar com ele, manipulá-lo”, um “savoir faire com isso que é seu sintoma” (savoir y faire avec son symptôme). Além dessa referência a saber manipular, ter um jeito com seu sintoma, me parece decisivo destacar, tendo em vista o modo como vou traduzir o título do Seminário 24 e as ressonâncias entre mourre e amour (“amor”), que Lacan (1976-1977a) também afirma nessa primeira aula que “o sintoma pode ser o parceiro sexual”. Nessa afirmação, leio que o equívoco não é apenas de o parceiro sexual poder ser tomado como um sintoma, mas, também, de que o próprio sintoma faz as vezes de um parceiro sexual.


A segunda frase do título, ... s’aile à mourre, será abordada mais claramente por Lacan (19761977b) na sétima aula do Seminário 24. De fato, ele não se dedica à palavra mourre e, quanto a isso, arrisco uma hipótese de que ela já era de algum modo conhecida por quem frequentava seu ensino. Assim, por exemplo, a lettre d’âmour (“carta de Almor”) do Seminário 20 – por sua inserção em uma aula em que é apresentada a “tábua da sexuação” e o modo como Lacan (1972-1973) procura abordar a diferença entre os sexos – não deixa de evocar o poema de Antoine Tudal, citado no escrito, digamos assim, “inaugural” de Lacan (1954): “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”.  Nesse poema, um terceiro termo se interpõe nos pares “homem e amor”, “homem e mulher”, “homem e mundo”, apresentando-se respectivamente como a “mulher”, “um mundo” e “um muro”. Por sua vez, a palavra mourre aparece explicitamente no quinto parágrafo de “Homenagem feita a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein” (1965), associada a um jogo infantil que lhe é similar (“pedra, papel e tesoura”), ao nome mesmo dessa personagem de Duras e no qual podemos ainda escutar um love (“amor”) indissociável do que se pode perder nesse jogo da mourre característico do próprio jogo amoroso.


Na sétima aula do Seminário 24, Lacan (1976-1977b) então não fala explicitamente da mourre, mas confia-nos uma passagem de sua história e que lhe evoca a segunda frase do título (... s’aile à mourre): a irmã, Madeleine, que lhe era dois anos mais nova e ainda não tinha como fazer uso do pronome pessoal “eu”, nem pronunciar corretamente o próprio nome, disse-lhe – “’Manène sabe’”. Tal passagem permite agora Lacan aproximar o inconsciente e a perspectiva do “savoir y faire” referida, na primeira aula desse Seminário, ao sintoma:

“o inconsciente é uma entidade que tentei definir pelo Simbólico, mas que, em suma, não deixa de ser uma entidade a mais, uma entidade com a qual se trata de savoir y faire”.

 

A frase de sua irmã lhe evoca o inconsciente e faz Lacan (1976-1977b) retomar a segunda parte do título do Seminário 24 porque, ao se colocar “na terceira pessoa nomeando-se Manène”, sua irmã se apresenta “sob uma forma que fazia parte do inconsciente”, pois é “uma ‘ela’ que, como no... título deste ano, s’aile à mourre, tomando-se como portadora de saber”. Nesse mesmo contexto, Lacan diz: “ele ou ela, é a terceira pessoa, é o Outro, tal como o defino, é o inconsciente”. Em outros termos, a frase de Madeleine reverbera o que ela, tal qual muitas crianças, escuta como proveniente do Outro e referente a um “si” que ainda não tem como dizer “eu” porque não se alienou propriamente à imagem que o Outro também lhe sustenta.
Porém, interpolada a essa passagem de sua vida pessoal e um pouco antes de abordar o passe, Lacan (1976-1977b) também vai dizer o seguinte: “o inconsciente é o que faz mudar justamente alguma coisa, o que reduz o que chamo de sinthoma”. Assim, se na primeira aula do Seminário 24, Lacan afirmava que, com o título proposto, visava “a introduzir alguma coisa que fosse mais longe que o inconsciente”, me parece possível sustentar que uma análise, ao savoir faire com o inconsciente, deve reverter a redução que este imprimiu ao sinthoma expandindo-o e permitindo que o falasser – tomado, como sujeito, pelas identificações que lhe foram conferidas pelo Outro – viva a pulsão identificando-se ao que ele “conhece melhor” que o Outro que o inconsciente é, ou seja, identificando-se ao que pode até lhe fazer as vezes de “parceiro sexual”, ao “sinthoma”.

 

Solução

Valendo-me do que apresentei até aqui, proponho como tradução do título do Seminário 24 o seguinte: O malsabido de um fora se joga no amor.


Prefiro verter l’insu que sait em “o malsabido”, porque essa frase em francês se refere ao que se passa em uma bévue, ou seja, inconscientemente: não se trata de um “não saber”, nem de um “insabido”, mas de um “saber” que se expressa como “mancada”, “tropeço”, “falha”, “deslize”. Aliás, o prefixo Un-, em alemão – presente no Unbewusst evocado por Lacan (1976-1977a) já na primeira lição do Seminário 24 – não designa propriamente uma “privação” como o latino “in-” (que também tem o demérito de nos evocar algo da ordem de uma “interioridade” bastante criticada tanto por Lacan quanto por Freud). Por exemplo, a palavra alemã Kraut pode ser traduzida por “erva” e Unkraut não é ausência de erva, mas, sim, “erva daninha”. Nesse contexto, “o malsabido” me parece pertinente para traduzir l’insu que sait, pois se trata de um saber que se apresenta sem se tomar – exceto quando nos lançamos na experiência analítica – como um saber. Em outros termos, apenas em uma análise, que é um jogo, como a mourre, onde o amor ressoa, é que esse “malsabido” se efetiva, não sem satisfação (ou seja, gozo), como “saber”.
Por sua vez, preferi traduzir une bévue por “um fora”, demarcando – em uma mesma palavra, bastante coloquial em português – o equívoco de tomar por exterior o que se apresenta inconscientemente, os sinônimos dessa palavra (“mancada”, “deslize”, “gafe”, “lapso”, “tropeço”), e ainda o que se apresenta quando algo na vida amorosa fracassa.


Para a segunda frase do título, ...s’aile à moure, não me ative ao pronome pessoal elle (“ela”) escutado na conjugação francesa do verbo aller (ir) que lhe é correspondente porque o próprio Lacan, como vimos acima, ressalta que se trata, “ele ou ela”, da “terceira pessoa”, e é essa referência ao que vem do Outro que importa. Ainda destaco que em s´aile se pode escutar também, em francês, aile, ou seja, “asa”. Este último termo aparece no plural, no parágrafo de “Homenagem feita à Marguerite Duras...” evocado acima e, na priapéias grega e latina 3 das quais Lacan (1962) me parece fazer uso pelo menos desde “Kant com Sade”, “asa” é também uma referência ao falo.


Ora, o jogo da mourre e seu equivalente brasileiro, a “porrinha”, não deixam aludir ao falo que, a meu ver, também está presente no ato mesmo de acertar, ou não, o número de dedos (ou palitos) mostrados pelos jogadores. No caso da “porrinha”, além de ser uma brincadeira tradicionalmente realizada entre homens, a referência ao falo também se escuta pela ressonância entre o nome desse jogo e o fluido que sai do órgão sexual masculino. Valendo-me de como a experiência analítica implica a transferência, ou seja o amor, para lidar com o que se impõe como “fora”, mas também do modo como o falo perpassa a mourre, a “porrinha”, o próprio jogo amoroso e me servindo ainda da ressonância de mourre em amour (“amor”) e em mur (“muro”), optei por traduzir s’aile à mourre como “se joga no amor”.


Cheguei, assim, à tradução do título do Seminário 24:

 

O malsabido de um fora se joga no amor.

 

NOTAS:

* Analista Membro da Escola (AME), pela Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP); Professor do Curso de Psicologia da Universidade FUMEC (Fundação Mineira de Educação e Cultura); Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq, nível 2) e do ProPIC-FUMEC (Programa de Pesquisa e Iniciação Científica da Universidade FUMEC); Doutor em Letras pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (FALE-UFMG) e Mestre em Filosofia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH) da UFMG.

1 Esses comentários podem ser lidos em:
http://www.ebp.org.br/dr/ebp_deb/debates007.asp (Acesso no dia 19 de fevereiro de 2014).

2 Esse poema, intitulado Se douloir (“Doer-se”), pode ser acessado, em francês, na internet: http://doudou.gheerbrant.com/?p=6193

3 Recomendo, para as Priapéias Grega e Latina, as traduções presentes no excelente estudo de Oliva Neto (2006).

 

 

REFERÊNCIAS:

A DIRETORIA NA REDE. Boletim da Escola Brasileira de Psicanálise, dezembro de 2013. Disponível em: http://www.ebp.org.br/dr/ebp_deb/debates007.asp (Acesso em: 19 de fevereiro de 2014).

APOLINAIRE, G. Álcoois (1913). Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Hedra, 2013, p. 195 (edição bilíngue).

APOLLINAIRE, G. Se douloir. Disponível em: http://doudou.gheerbrant.com/?p=6193 (Acesso em: 20 de fevereiro de 2014).

LACAN, J. O tempo lógico e a asserção antecipada: um novo sofisma (1945). In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 197-213.

LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1954). In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 289.

LACAN, J. Kant com Sade (1954). In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 784.

LACAN, J. O seminário. Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar, 1988, p. 255.

LACAN, J. Homenagem à Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein (1965). In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 198-199.

LACAN, J. O seminário. Livro 19: ...ou pior (1971-1972). Rio de Janeiro: Zahar, 1988, p. 17-18.

LACAN, J. O seminário. Livro 20: mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 105-120.

LACAN, J. Le séminaire 76-77: L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre (1976-1977a). Ornicar? Bulletin périodique du Champ freudien, n. 12/13 (spécial), leçon du 16 novembre 1976.

 LACAN, J. Le séminaire 76-77: L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre (1976-1977b). Leçon du 15 février 1977 (inédit).

LE GRAND ROBERT DE LA LANGUE FRANÇAISE (1984-2001) [version electronique]. Dictionnaire apphabétique et analogique de la langue française de Paul Robert. Bureau Van Dijk, 2ème édition (dirigée par Alain Rey).

OLIVA NETO, J. A. Falo no jardim. Priapéia grega, priapéia latina. Campinas: Ateliê Editorial e Editora UNICAMP, 2006.

 

Elza FreitasElza Freitas

Esse título, que figura em um Seminário em que Lacan nos fala das identificações, marcado pela genialidade do autor, é um título que se desdobra como uma, como várias figuras topológicas. Cada palavra, no registro de uma lalangue, formada de neologismos e costurada com a liberdade do voo e do desdobramento infinito de uma topologia, se replica, desdobra, se dobra, retorna, enrola, enoda remetendo a um reviramento fascinante o quanto baste, onde igualmente é lógico .
Esse esforço, pontual, às vezes me lembra Joyce, que queria falar todas as palavras faladas e pensadas misturadas num aqui e agora (comparando-o a Lacan, quem sabe  lhe ofereço um lugar melhor que o pior). O que Lacan fez para tal esforço, chamando-o  o Symptôme. Onde se espera que nós analistas esbarremos, ali onde o linear não dá mais conta.
Ofereço-os duas versões de minha rarefeita lavra e justifico:
Para a que compus primeiro, e à qual sou mais afeita, me esvazio até onde posso de qualquer ambição de repetir o irrepetível do gênio, daquilo que  é qualidade impar do autor, que o tempo e a morte dataram, já que tal ambição é vã.  Faço então uma nua e quase impalpável fita linear, plana e tão leve que o sopro de meus dedos no computador a fazem ondular e esvoaçar. Uma banda antes de qualquer dobra ou enlace.
Na segunda a escrever, coloco o que posso do pensar e fazer de meu engenho e arte buscando nas palavras laços, enlaces, dobras, desdobras, toros, voltas moebianas, cortes que venham a dar mais cortes mais cortes mais cortes mais cortes e voltas voltas voltas. Nessa, conjugo insucesso bévue e o que em mim não sei mais, não sei nunca. Com percurso e borda. Erro crassamente. Agradeço o retorno que receber, pois o retorno será uma volta, mais uma volta, ou um corte , mais um corte,  mas em todos  os casos – borda. Obrigada pelo convite.

O amor sucede e voa onde, a revelia, o incons-ciente erra

Su(b)cesso de (fra-)crassoerro quñcessa-be d´Um amorré

 

Yolanda VilelaYolanda Vilela

O título do Seminário 24 – “L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre” – está estreitamente articulado às elaborações que Lacan desenvolve nos Seminários precedentes, estando, assim, na sequência lógica de seus esforços de formalização. Numa vertente “joyciana”, o título do Seminário 24 traz jogos significantes múltiplos, que remetem a significações igualmente múltiplas.
Lacan está às voltas, nesse momento de seu ensino, com o novo estatuto do inconsciente e do amor – une-bévue e à mourre – e parece ter, em seu horizonte, a questão: como abordar a ancoragem, ou a inscrição, do dizer no corpo? Se as palavras depositam no corpo marcas ou letras de gozo, como devolver a essas marcas e letras a equivocidade que lhes é intrínseca? Em outras palavras, como um saber inconsciente pode se sustentar sem passar pela armadura conferida pelo amor do pai? A aposta de Lacan parece consistir na reintrodução da equivocidade da letra, uma vez que, pela letra, o singular e a contingência podem ter lugar na história do sujeito.
No Seminário Les non-dupes errent  Lacan traz uma indicação que me ajuda a pensar nesse novo estatuto do amor vinculado à dimensão contingencial do inconsciente. Ele diz:“Si l’amour, devenant un jeu dont on sait les règles[…], s’il fonctionnait à conjoindre la jouissance du Réel avec le Réel de la jouissance, est-ce que ce ne serait pas là quelque chose qui vaudrait le jeu ? (Lição do dia 12/03/1974). “Se o amor, tornando-se um jogo de cujas regras se soubesse [...], se ele funcionasse unindo o gozo do Real com o Real do gozo, não seria isso alguma coisa que valeria o jogo?” Uma nova vertente do amor é apontada por Lacan: o jogo do amor vale a pena quando prevalece nele certa versão lúdica ou, em outras palavras, um puro jogo de letras, tal como no jeu de la mourre. Os versos de Rimbaud soletram a trama contingencial que um amor assim concebido pode veicular:
Un coup de ton doigt sur le tambour décharge tous les sons / et commence une nouvelle harmonie. / Un pas de toi, c’est la levée des nouveaux hommes et leur en-marche. /  Ta tête se détourne: le nouvel amour! / Ta tête se retourne – le nouvel amour ! “Um toque de teu dedo no tambor faz ressoar todos os sons / e inaugura uma nova harmonia / Um passo teu recruta novos homens e os coloca em movimento / Tua cabeça se vira: o novo amor! / Tua cabeça se volta: o novo amor! [...] (RIMBAUD, A. À une raison. In: Illuminations/Oeuvres complètes. Paris: Bibliothèque de la Pléiade/Gallimard, 1972, p. 130).
A proposta de uma tradução do título do Seminário 24 me coloca, de início, diante de vários níveis de dificuldades, pois, por um lado, a equivocidade das letras ali presentes deve ser mantida; o jogo de significações presente no nome do Seminário traz, de certa forma, o próprio conteúdo do que se trabalha no interior do desse Seminário. Por outro lado, há que se esboçar uma tradução possível a minima, caso contrário se corre o risco de cair em uma infinitização de combinatórias possíveis.
Eis algumas das ressonâncias que me ocorreram ao pensar em uma tradução possível para o título do Seminário 24 de Lacan:
O um-sucesso do inconsciente sela o amor
No um-sucesso do inconsciente erra o amor
O um-sucesso do inconsciente é o sê-lo do amor
O um-sucesso do inconsciente dá asas ao amor, etc.
 Em todas essas assonâncias, que jogam com a equivocidade da letra, me parece que é a contingência que enlaça inconsciente e amor, na medida em que a dimensão contingencial do novo amor só pode advir porque o inconsciente é doravante concebido como uma bévue, ou seja, como algo que pode se dar ou não.

 

Louise Amaral LhullierLouise Amaral Lhullier

 

Evidentemente não há conhecimento [do inconsciente]. Não há mais que um saber no sentido que eu disse ao início, ou seja, que a gente se equivoca.

(Jacques Lacan)

 

Tomo como ponto de partida que o Seminário 24 - L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre - coloca em evidência, desde o título, a dimensão do equívoco, da falha, cuja importância Lacan já sublinhara em ocasiões anteriores. Isso já aparece, por exemplo, na “tradução” de Unbewusst  por une-bévue /equívoco,  a despeito do sentido da palavra em alemão não se manter na “tradução” francesa, que é mais propriamente uma interpretação, uma transliteração à la Joyce, do alemão para o francês, que não se repete na passagem para o português.


Não se trata, no entanto, de reduzir l’une bévue a Unbewusst, o inconsciente, pois Lacan alerta que com esse L’insu que sait de l’une bévue  tenta “introduzir qualquer coisa que vá mais longe que o inconsciente” (p.5), algo que lhe escapa. 


L’insu que sait, ça équivoque (p. 5). A ambigüidade da expressão “o insabido que sabe” é explicitada pelo próprio Lacan. O saber que está em jogo na dimensão do inconsciente é da ordem do significante, portanto condenado ao insucesso na tentativa de escrever o real.


Na mesma ocasião, ele sublinha a importância do de, partitivoque antecede l’une bévue: nessa qualquer coisa que vai além do inconsciente está em jogo algo da ordem de um equívoco.


C’est l’amour, “é o amor” é o que se pode “escutar” em francês na leitura de s’aile à mourre.  A escrita, por sua vez evoca um “se asar / se alar” ou, talvez melhor dito, um “levantar voo” que articula o amor com o saber do insabido sobre o equívoco. Mas, com a liberdade que decorre da impossibilidade de uma tradução do título do seminário, quem sabe lembrar que aile também se traduz como ala e evocar Chiquinha Gonzaga: “Ô abre alas que eu quero passar!” Abrir alas para o amor: seria essa uma maneira possível de se dizer de algo que se passa em uma análise?


À mourre remete ao jeu de mourre, um jogo de adivinhação sobre a soma do número de dedos ora ocultos, ora mostrados por uma dupla de jogadores. Para cada um deles está em questão a incerteza em relação ao jogo do adversário. A contingência se apresenta para cada um deles, então, sob a forma da aposta do outro: cada um faz a sua aposta tentando adivinhar quantos dedos o outro esconde/mostrará. Impossível não notar a semelhança com o jogo amoroso, e no equívoco como inevitável, pois não há como saber sobre a aposta do outro.  


À mourre reforça, então, creio eu, essa dimensão do amor como jogo, como equívoco e como contingência, em resposta ao real da relação sexual que não cessa de não se escrever, em resposta a essa qualquer coisa que está para além do inconsciente freudiano.
A partir daí, ocorreu-me como uma possibilidade de título:

Do insabido sabê-lo equívoco abre alas para o amor1


1 As citações foram extraídas do texto estabelecido por Jacques-Alain Miller do Seminário L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre, sessão de 16 de novembro de 1976,  publicado em Ornicar?,  Bulletinpériodique du Champ Freudien, Paris, no. 12/13, dezembro de 1977, p. 4-16

 

Luiz FranciscoLuiz Francisco

 

Segundo Lacan, a fórmula L’insu que sait de l’une bevue é uma tentativa de introduzir alguma coisa que vai mais além do inconsciente, alguma coisa que tem relação com a lalíngua. Escolher uma tradução para o título desse seminário sem dúvida é uma tarefa bastante complexa em razão da própria estrutura que a fórmula engendra: os equívocos homofônicos. A meu ver, esse título é uma consequência lógica da tese que o tecido do inconsciente é constituído por uma relação de homofonia, por uma relação de proximidade definida pela materialidade do significante. Lacan trabalha justamente neste Seminário a topologia do significante para demonstrar a estrutura do tecido do inconsciente, problematizando assim a relação entre o interior e o exterior, o que Freud chegou a nomear de endopsiquismo. Nesse sentido, acho que o desafio maior é encontrar uma tradução que mantenha esse traço espirituoso de Lacan que encontramos no título.


Ao se optar por um dos sentidos do título, perde-se a propriedade topológica que encontramos nele. O insucesso de um inconsciente é dar asas ao amor seria minha primeira sugestão a partir da sonoridade da frase e por conter a palavra aile, asa. No entanto, devemos levar em conta o jogo homofônico destacado por Lacan na escrita do título.


Na expressão insu de (à l') encontramos uma locução prepositiva que indica sem que a gente saiba ou à revelia de. Podemos utilizar a palavra insabido para traduzir insu. No entanto, não corresponderia exatamente ao sentido do francês. Parece mais apropriado optar pela homofonia com insuccès, insucesso. Trata-se de um insabido ou desconhecido que sabe. Já o artigo de em de l’une-bevue é um artigo partitivo que designa em francês uma parte de um todo. Logo se trata de "um" bevue  (l'Unbewusst): uma gafe, um sonho, um ato falho, qualquer coisa que substitui o que se funda como saber, qualquer coisa que substitua o S1, o l’Un.


Na lição de 15 de fevereiro de 1977, Lacan apresenta uma tradução para a expressão qui s’ailait à mourre: aquele que se tem como detentor do saber. Por outro lado, indica que é o Um que sabe e não o sujeito suposto saber, o Um que tem como suporte a raiva, parente do amor, de la mourre. Como já foi destacado anteriormente, la mourre designa uma forma antiga de chamar o jogo da porrinha. Justamente nessa mesma lição Lacan retoma o escrito sobre a A carta roubada para lembrar que a letra sempre encontra o seu destinatário; o inconsciente como máquina, como o Outro com o qual nós jogamos. O título do Seminário 24 engendra diferentes possibilidades de sentido. Ainda acho que o maior desafio é encontrar uma tradução que ilustre o equívoco homofônico, encontrar um título em português que contenha a propriedade topológica do significante, o voo da letra e do objeto a (s’aile a mourre). Caso contrário, eu preferiria manter o título em francês, ou simplesmente L’insu.

 

Luiz Henrique Vidigal

 

Eu acho que o titulo do Seminário 24 não deve ser traduzido. É uma interpretação. É um titulo para ser explicado, trabalhado nas suas incidências semânticas e conceituais.

 

O próprio Lacan faz isso durante o Seminário. A primeira frase do Seminário é:


“Souberam ler o cartaz?”. De qualquer forma, envio-lhes algumas brincadeiras que fiz a partir do convite de vocês.

 

O mais literal, tal como foi feito em espanhol:
O não sabido que sabe de uma equivocação se ampara na morra
Não diz muita coisa!

 

Um mais livre e brincalhão:

O saber que se sabe asneira joga purrinha
Mas ele não sustenta o trabalho do Seminário.

 

Finalmente, um que livremente interpreta as assonâncias do titulo e é auto explicativo:
O não saber que sabe do inconsciente é o amor


O problema é que este explica demais e não vai em direção a um significante novo, sem sentido, que Lacan indica.