CorreioExpress
home
Não existe raça, mas racismo
Sérgio de Campos

Racismo é um conjunto de crenças expressas em discurso para justificar a hierarquia de uma raça em prejuízo de outra. Essas crenças associadas a um conjunto de práticas e instituições discriminatórias proporcionam condições políticas e sociais a um determinado grupo em detrimento de outro 1.

Após a queda do regime nazista, a UNESCO, entre os anos 50 e 60, convocou, em quatro ocasiões, eminentes cientistas com a finalidade de se pronunciarem sobre o estatuto científico de raça. Chegou-se à conclusão que não existem provas científicas de que os grupos humanos diferem suas características mentais inatas em raças, tanto no que concerne à inteligência quanto ao que tange ao temperamento. Ou seja: as diferenças entre os grupos humanos não são determinadas geneticamente e as evoluções sociais e culturais são independentes das constituições inatas.

A UNESCO concluiu que todos os seres humanos são capazes de participar da vida comum, de respeitar a reciprocidade, os deveres e de viver conforme o contrato social, e que, portanto, as diferenças étnicas são irrelevantes para as questões de organizações políticas, sociais, morais e culturais da humanidade. A UNESCO concluiu, assim, que não existe justificação alguma na ciência para se usar o conceito de raça. O consenso da comunidade científica abalou totalmente a credibilidade daqueles que, na época, defendiam as teorias racistas. Inobstante a raça não encontrar apoio na ciência, o racismo não foi excluído dos discursos do senso comum.

Define-se racismo como “relações raciais, ideológicas ou religiosas” que utilizam as “distinções odiosas e injustas” entre os fenótipos e as diferenças culturais com a finalidade de justificar o domínio em situações de conflitos. As características dessas “distinções odiosas” são a competição, a exploração, a opressão e a discriminação, indo mais além da que se observa no livre mercado; ademais, o racismo acontece entre grupos fechados, sendo impossível a permuta de filiação de um grupo para o outro; e por fim, todo o racismo é justificado pelos grupos dominantes sob a alegação de teorias determinísticas em razão de uma natureza biológica, como a teoria nazista de que os “arianos são raça pura”, associada a um conjunto de práticas que justificavam as atrocidades contra os judeus, em oferendas a um “Deus obscuro”2. Em épocas de tensões políticas, econômicas e sociais, o racismo converte as minorias em bodes expiatórios para sanar os males da sociedade.

A alegação geral é de que no Brasil não existe racismo. Com efeito, no país, a maioria das formas de hostilidades ou discriminações contra “grupos étnicos” são disfarçadas, encobertas e dissimuladas, particularmente, quando praticados por organismos oficiais. Segundo a ONU3, o racismo é um problema estrutural do Brasil. A nova direita, ao negar o racismo, de modo cínico, propaga as boas intenções em nome da harmonia e da paz que “essas pessoas preferem o relacionamento social, sexual e cultural com sua própria raça”4.

O racismo no Brasil não é um tema uniforme, susceptível a uma explicação única, mas amplo, complexo, com diversas nuances históricas que se baseiam na tese de que os negros têm um temperamento violento e preguiçoso e que seriam responsáveis – de acordo com estatísticas – pelos conflitos, tensões sociais e pelas próprias mortes. Assim, as minorias vulneráveis se tornam as culpadas pelos males econômicos e sociais, o que justificariam sua exploração e sua desvantagem na sociedade econômica.

O colonialismo e o sistema de classe induziram ao racismo, particularmente, onde os imigrantes são submetidos à exploração e à opressão mais severas do que aquelas que o mercado de trabalho impõe aos trabalhadores do próprio país, como por exemplo, atualmente, os imigrantes venezuelanos no norte do Brasil.

Gilberto Freyre, em Casa grande & senzala, pintou com cores fortes um quadro brasileiro de contornos precisos e verdades incontestáveis de um equilíbrio de antagonismos que fez da civilização brasileira rica e singular. Entretanto, os críticos de Freyre ressaltam que a miscigenação esteve longe de ser coerente, visto que o racismo fora situado na própria arquitetura da Casa-grande. O próprio Freyre reconhece esse fato no prefácio de sua primeira edição, no qual assinala que distante de ser harmônica, “a Casa-grande completada pela senzala representa todo um sistema econômico, social e político de produção da monocultura latifundiária e do trabalho escravo que revela uma dissimetria de classe social, econômica e cultural” 5.

O racismo no Brasil, como apartheid social, se expressa contra negros, mulatos e índios, de forma que o preconceito resiste na sociedade, camuflado, resultando numa menor remuneração aos negros em relação aos brancos. Darcy Ribeiro, em O povo brasileiro, ressalta que as classes dominantes “guardam, diante do negro, a mesma atitude de desprezo vil” que seus antepassados escravocratas. “Os pobres e os negros em geral são vistos como culpados de sua própria miséria, em razão de suas características raciais e não devido à escravidão e à opressão”6. Darcy Ribeiro afirma que não é só o branco que discrimina o negro no Brasil, mas, o preconceito é assimilado pelos próprios negros que ascendem socialmente, “os quais se somam ao contingente branco para discriminar o negro incluído na massa”7. Assim, a miscigenação não chega a se configurar como uma democracia racial, como conjecturou Freyre, mas, em um racismo, na medida em que no fundo, existe uma expectativa de que o negro desapareça pela apuração da mestiçagem.

Nos últimos anos, foram aprovadas leis com a finalidade de atenuar o racismo, a segregação e a discriminação social no Brasil. Entretanto, a psicanálise não visa recusar as leis, mas, inscrever e acolher o real no não-todo que escapa à lei simbólica. Lacan assinala que a psicanálise tem a tarefa de indagar a segregação e as leis na modernidade, com a finalidade de fazer vacilar as defesas contra o real para alcançar a singularidade de cada um – seja negro, pardo, índio, ou branco – em sua “diferença absoluta”8. Enfim, não há raças, mas um imaginário designado como racismo no que concerne à fratura do íntimo/êxtimo e à intolerância experimentada como o ódio e o insuportável, diante do gozo do Outro, cuja saída é aniquilá-lo, sob o viés da segregação9. Portanto, a psicanálise ao favorecer o bem-dizer, visa esvaziar a consistência imaginária, “des-massificar” o sujeito e desconstruir a lógica do racismo10 .

1 ZUBAIDA, S. Racismo. In: Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1996, p. p. 643.

2 LACAN, J. O Seminário, Livro XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1988, p. 265-266.

3 ONU, ed. (dezembro de 2012). «Grupo da ONU reconhece o racismo como problema estrutural do Brasil». Consultado em 10 de fevereiro de 2018.

4 ZUBAIDA, S. Racismo. In: Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1996, p. 644.

5 FREYRE, G. prefácio, Casa-grande & senzala, Rio de Janeiro: José Olímpio, 1987, p. 12.

6 RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 225.

7 Idem, p. 226.

8 LACAN, J. Aturdito. In: Outros escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar editor, 2003, p. 462.

9 MILLER, J.-A. Extimidade. Buenos Aires: Paidós, 2010, p. 55.

10 NAVEAU, L. O real, um anti-racismo inédito. Um real para o século XXI. Lacan cotidiano, n. 357.

   
 
Instagram Instagram