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A contingência negra
Marcelo Veras

Deus, existindo ou não, lançou os dados. No turbilhonar, pode sair um branco na Tanzânia, um amarelo no Canadá; quem sabe um negro no sul dos Estados Unidos? Tantas e tão diversas possibilidades apontam para a vertigem da diversidade humana. Os humanos formam grupo homogêneo, quase homo-genético em sua hétero-geneticidade (neologismos por minha conta). Mas o turbilhonar cessa – os dados caem e jamais serão mudados: você nasceu negro, no Brasil, em 2018. E você certamente não saberá que em uma sala de hotel em Belo Horizonte, psicanalistas tentam dar conta do atraso histórico em abordar a questão do sofrimento subjetivo decorrente do racismo.

Lacan lançou um desafio aos psicanalistas: Como nós, quero dizer os psicanalistas, vamos responder ao fato de que a segregação foi posta na ordem do dia por uma subversão sem precedentes?1.

Ao ser convidado para essa mesa, com certo constrangimento, ouvi de um colega negro o comentário: que bom que, enfim, a psicanálise resolveu falar do racismo; e mais, ao procurar textos recentes deparei-me com uma produção psicanalítica esquálida e completamente desproporcional à população brasileira, já que vivemos em um país onde mais da metade da população é preta ou parda. Talvez os psicanalistas não vissem o racismo como algo da prática da psicanálise, ou mais inquietante, como algo que não surge em sua prática cotidiana. Seria então o caso de afrontar a pergunta desconfortável que vira e mexe ouvimos: a psicanálise é, ou não, elitista? Em um país continental em que os negros estão constantemente ancorados nas classes econômicas menos favorecidas, como encontrar muitos negros em análise? Como encontrar muitos negros psicanalistas quando sabemos que a formação de um psicanalista da Escola Brasileira de Psicanálise envolve anos de análise, supervisão, viagens a congressos, etc.?

Por que a psicanálise não é elitista? Porque somos trabalhadores que pagamos com a presença de nossos corpos, sem intermediários, sem mais valia, para o exercício do nosso ofício. O analista já foi associado a um pedinte, que abre sua mão no final da sessão para receber sua remuneração, também já foi associado a um santo por Lacan. A pergunta que deixo para os psicanalistas da EBP é: como formar psicanalistas que não possuem renda suficiente em uma Escola onde tudo é tão caro? Aqui, não posso me esquecer do esforço de Judith Miller para que candidatos a analista cubanos, venezuelanos e de outros países em vulnerabilidade política e social pudessem encontrar o Campo Freudiano. Pergunto-me até que ponto o gesto de Judith não se aproxima da lógica da política de cotas.

Não podemos levar essa questão adiante sem considerar a presença do racismo no cotidiano e a dificuldade em oferecer um lugar de fala aos negros brasileiros. Como em um país, no qual o resultado de pesquisa elaborada em 2008 demonstra que, apesar de compor metade da população brasileira, os negros elegeram pouco mais do que 8% dos 513 representantes escolhidos na última eleição, a política de cotas pode não ser considerada justa?

No fundo, essa pergunta é o eco da crítica que Frantz Fanon faz ao livro Psicologia da colonização, de um dos grandes psicanalistas franceses, Octave Mannoni, quando este afirmava que a França era o país menos racista do mundo, que os negros na França não sofriam como os negros nos Estados Unidos2. Fanon, em Pele negra, máscaras brancas, não deixa dúvidas de sua posição: Mannoni era incapaz de ver o racismo em si.

Em 2018 estamos muito longe do texto “A questão da raça”, primeiro e equivocado texto sobre a questão racial feito pela Unesco em 1950. Três outras versões tentaram da conta dos equívocos desde então. Estamos ainda mais distantes da querela envolvendo Arthur de Gobineau, que no século 18 publica seu Ensaio sobre a desigualdade das raças3, grande inspirador do racismo científico, e a quem é atribuída a famosa crítica racista à miscigenação: “Não creio que viemos dos macacos mas creio que vamos nessa direção.”

Contudo, em 2018, estamos próximos da resposta de Anténor Firmin a Gobineau, que no mesmo século 18, em seu livro Da igualdade das raças humanas, contraria o determinismo e afirma que “o acaso entra de modo notável como a parte maior de todas as coisas humanas”4. Parece pouco, mas é enorme pensar que isso foi dito em 1885, mesmo ano em que Leopoldo II, Rei da Bélgica, inicia o mais brutal genocídio de populações negras de todos os tempos no Congo.

E o que dizer do viés de leitura de artigos como o do cientista Sérgio Pena, citado por Jésus Santiago no convite a esse colóquio, em que a proximidade genética entre as raças, ao invés de destruir o argumento do racismo, é utilizado por alguns para precisamente fazer valer a distorção do conceito de meritocracia em detrimento do conceito de reparação: se todos são iguais geneticamente, todos competem em mesma situação? Ou seja, se negros e brancos são iguais geneticamente, que vença o melhor nos concursos públicos e nas seleções de emprego.

Ora, sobreviver no mundo competitivo das oportunidades não tem nada a ver com os jogos olímpicos, o corpo que interessa à psicanálise não é feito de carne e osso, ele é feito de carne, osso, e de um estranho objeto que está sempre em exclusão interna a todo discurso a que os corpos são submetidos. É o que a psicanálise designa como o objeto da pulsão. É esse objeto que pode ter uma função de brilho para alguns, ou de objeto repulsivo por outros. Nesse sentido, entendo a pertinência do título desse colóquio – Por que só há raças de discurso? – como modo de atribuição de um valor de agalma (brilho) ou de Kakon (dejeto), de objeto precioso ou objeto perigoso aos corpos supostamente naturalizados pelo progresso da ciência. E nesse quesito a competitividade é outra: se geneticamente somos iguais, a carne mais barata do mercado continua sendo a carne negra.

Lacan, nos anos setenta, alerta para o futuro da segregação e do racismo. À época, pareceu estranho que em plena efervescência dos movimentos de libertação dos corpos ele apontasse para o fato de que os avanços democráticos não nos protegeriam da barbárie. Não por acaso ele nomeia seu Seminário dos anos 70, ano em que ele mais falou explicitamente da segregação, com o título de “...ou pior”. É nesse sentido que o psicanalista Éric Laurent se refere ao racismo. Para ele, o racismo muda seus objetos na medida em que as formas sociais se modificam. Contudo, ainda na perspectiva lacaniana, é impossível poupar a comunidade humana de uma rejeição do gozo inassimilável proveniente de uma possível barbárie5. A palavra barbárie, aqui, deve ser pensada como o fracasso dos ideais em disciplinar e legislar sobre os corpos.

Ou seja, Lacan desloca a questão do racismo. Ele deixa de ser apenas uma questão de supremacia e colonialismo para ancorar suas raízes em um complexo inconsciente de horror e fascínio que o gozo encarnado em outra raça pode causar. Aqui saímos do registro do negro para o registro do opaco.

Se Lacan insistiu nessa dimensão do racismo na “Proposição...”, foi para salientar que todo conjunto humano comporta no fundo um gozo extraviado, um não saber sobre o gozo que corresponderia a uma identificação. O psicanalista é simplesmente aquele que deve saber disso para constituir a comunidade dos que se reconhecem como psicanalistas6.

Sobre a escravidão, concordo com o que comenta Antônio Risério sobre Proudhon, quando esse afirma que toda escravidão é um assassinato; penso mesmo que a psicanálise se aproxima desta visão. Diz ele: a tensão existencial do escravo reside exatamente na contradição entre pessoa e coisa. É possível tentar coisificar uma pessoa, mas é impossível levar essa coisificação ao ponto final. Restará sempre um cerne indestrutível. Um indestrutível átomo de humanidade. E é justamente essa chama do humano que aquece a rebeldia essencial7.

É o que nos permite perceber que o equívoco a que a história pode nos induzir é de pensar que o Outro, para o negro, é o branco colonizador e escravagista. Na verdade, o Outro para o negro, no Brasil de hoje, são os milhões de negros escravizados, em subempregos, as mães empregadas domésticas, os jovens negros assassinados a cada 23 minutos, os pais humilhados, etc. Eis porque o significante reparação é tão importante na questão do racismo hoje.


1
LACAN, J. “Allocution sur les psychoses de l’enfant”. In: Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, p. 363.

2 FANON, F. Oeuvres, Du pretend complexe de dependence du colonisé. Paris: Ed. La Découverte, 2011, p.136.

3 GOBINEAU, A. Essai sur l’inégalité des races humaines. Paris: Éditions Pierre Belfond, 1967, 873 pages.

4 FIRMIN, A. “Le hasard entre pour une part notable dans toutes les choses humaines”. In: De l’Égalité des Races Humaines (Anthropologie positive). Paris: Librairie Cotillon 1885, p. 7. Exemplar da Biblioteca Nacional da França.


5 LAURENT, E. Le racisme 2.0, Lacan Quotidien, n. 371, 26 janeiro 2014.

6 Le racisme 2.0, ibid.

7 RISÉRIO, A. A utopia brasileira e os movimentos negros. Editora 34: São Paulo, 2007, p. 326.



 
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