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A verdade histórica ou o real?
Luiz Fernando Carrijo da Cunha
 

Trazemos hoje para este II Fórum La movida Zadig – Doces&Bárbaros, um tema tão espinhoso quanto aquele da “Corrupção” ao qual nos dedicamos em agosto último. A dificuldade repousa sob dois aspectos: primeiro por despertar as paixões numa ordem coletiva e segundo, por estas paixões mesmas encontrarem o índice do mal-estar no mundo contemporâneo. O racismo, tanto quanto a corrupção, não são fatos novos atravessando os séculos na existência humana. O que é relativamente novo em tudo isso é, nas palavras de Z. Bauman, o “autoritarismo democrático”1 a serviço do consumo e disseminado, sobretudo pelas redes sociais. Ou seja, tal autoritarismo democrático leva ao consumo não apenas de objetos produzidos pela tecnociência, mas também ao consumo de “falsos ideais” promovendo a proliferação de opções identitárias. O título que dei a esta intervenção sugere a extração de duas “vias” através das quais o racismo pode ser abordado, mas não sem considerar, em ambas as vertentes, o fator preponderante na constituição do “discurso da hipermodernidade”2 que eleva o objeto ao “zênite social” e, cuja consequência é fazer do lugar do sujeito, puro consumo. Desde esta perspectiva, e nos aproximando mais das teses de Lacan no que diz respeito à escalada da segregação nos nossos tempos, traduzimos o termo de Bauman “autoritarismo democrático” por “imperativo superegoico” que empurra ao gozo, permitindo-nos com isso explorar o paradoxo que daí se depreende, onde por um lado pode-se entrever o efeito de coletivização – Não há nada mais coletivizável do que uma palavra de ordem, e por outro lado a solidão vivida na angústia do “tudo poder”. Em outros termos, o ideal da higienização está embutido no discurso que porta o “autoritarismo democrático” e seu efeito no tempo é a constatação do retorno do resíduo que fora expurgado. Isso nos coloca frente ao problema do racismo e, especialmente em nosso país que tem na sua história de origem o regime “escravocrata” e a discriminação da raça negra que, de modo algum tivera um tratamento aceitável desde então. Entretanto, a pergunta que faço é a seguinte: O fato histórico se deixa recuperar em sua verdade ao longo das gerações? Certamente que não! Por mais que ela seja contada e transmitida, restará sempre por dizer. É claro que medidas políticas e sociais que minimizem os efeitos deletérios da discriminação são sempre bem vindos, ainda que algumas iniciativas possam ser criticadas, justamente por operarem em nome do “autoritarismo democrático” que transforma o que seria da ordem de um “ato político” em “politicamente correto” e que, certamente, não cala a palavra de insulto, tampouco trata o ódio que está na raiz da coisa. Em se tratando disso, o que vemos é justamente um recrudescimento de fenômenos segregativos.

Esta seria então a via para abordar o racismo através de sua verdade histórica e, no nosso caso, elevar os fatos ao nível de uma dívida a ser quitada. Reconhecer a dívida já é, em si mesmo, um ato político que, se por um lado apazigua os espíritos discriminados, por outro requer uma reflexão mais detida. Enfim, a questão é o que fazer com ela? Entendo o reconhecimento da dívida como um ato político mais pelo fato de “localizar” uma questão do que pela penitência que pode estar aí requerida.

A “escravidão” no Brasil foi uma contingência que marcou a nossa história e que fomenta a discriminação racial, mas ela está longe de ser um índice da verdade sobre o racismo.

Mas ora, a dívida, ela tem seu valor na estrutura simbólica e sobretudo num momento onde o que organizava o discurso era o valor universal de um significante, o significante mestre no lugar de agente – nesse sentido, uma dívida contraída como moeda de troca na aquisição do sentido das coisas, na aquisição da fala e, enquanto tal, impagável na medida em que deixa sempre um resto! A questão se torna mais complexa em nosso tempo, pois justamente o “resto” vem ocupar o proscênio no agenciamento do discurso como já referido sobre a constituição do discurso da hipermodernidade – um resto intragável, sem dúvida, mas que pode nos servir de índice, para além da verdade que cala.

Isto nos abre, portanto, uma outra via possível para abordar o tema do racismo. Se chegamos a intitular esse Fórum como “Por que existem apenas raças de discurso: Desafios da democracia”, foi por estarmos assentados sobre as bases do que produz o mal-estar na civilização; à diferença de crer no capital e nos poderes infindáveis apregoados pela tecnociência, cremos, por que não? no real sem lei, que preside tudo isso. A solução não é mágica, ela é analítica e uma coletividade só pode ser afetada a partir do Um que a descompleta. Ou seja, os efeitos analíticos só podem ser colhidos no um por um e isso faz um coletivo de uns; sem dúvida que não sem paradoxos e um deles, talvez o mais fundamental, é a questão da identificação que, para falar de um lugar desde onde se descompleta o Outro, privar-se de suas identificações é primordial.

 Se o racismo é um sintoma coletivo, ele o é na medida da forclusão de cada sujeito em detrimento do mestre contemporâneo.

Concluo esse pequeno percurso deixando a questão em aberto. Cito J.-A. Miller em “Extimidade”3: “Que se pense contudo, que é possível dizer algo sobre o racismo desde a psicanálise... e, considerando as causalidades econômicas, sociais e geopolíticas (e eu acrescentaria “históricas”) pode-se cobrir um vasto campo deste fenômeno; mas sem dúvida resta algo que faz pensar que nem tudo está nesse nível e que há um resto que se poderia chamar de causas obscuras do racismo”.  Claro que muito há o que dizer sobre tais “causas obscuras” na medida em que a psicanálise pode se ocupar delas. Aos que me conhecem, já sabem do gosto que tenho pelo que faz “sombra” reduzida ao extremo e que, portanto, não convoca mais a luz da “verdade dos fatos”.

Belo Horizonte, 9 de março de 2018.

1  BAUMAN, Z. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

2 MILLER, J.-A. “Uma fantasia”. In: Opção Lacaniana, nº 42, São Paulo, 2005, pág. 07-18.

3 MILLER, J.-A. Extimidade. Buenos Aires: Paidós, 2010.

 

   
 
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