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Um resto fecundo 1
Daniela de Camargo Barros Affonso 2

“O que um dia veio à vida aferra-se tenazmente à existência. Fica-se às vezes inclinado a duvidar se os dragões dos dias primevos estão realmente extintos”, diz Freud em Análise terminável e interminável 3.

Pesquisadores descobriram que resíduos de plástico podem se transformar em um novo mineral. O “Plastiglomerado” é uma fusão de materiais naturais e artificiais. O plástico derretido se funde com areia, conchas, seixos, basalto, coral e madeira, ou penetra nas cavidades das rochas, formando um híbrido de pedra e plástico. O material foi descoberto em 2006 pelo oceanógrafo Charles Moore, na praia de Kamilo, na maior ilha do Havaí. Muitos cientistas acreditam que a terra entrou em uma nova era geológica, o Antropoceno, na qual a atividade humana está deixando uma marca vasta e durável na natureza. O Plastiglomerado poderá ser fóssil no futuro.

Bassols em “A transferência, entre o amor e o gozo”, intervenção de fechamento do XII Congresso da SLP que aconteceu em Roma nos dias 14 e 15 de junho de 2014, comenta que houve um tempo em que os restos eram o mais valioso de uma civilização. Transformar as ruínas em restos admiráveis foi uma das atividades humanas mais importantes. Hoje os restos da nossa civilização são antes de tudo um problema, um verdadeiro obstáculo à sobrevivência da própria espécie. A própria natureza tornou-se hoje um resto do simbólico e um resto a ser preservado da ação do homem.
Nossos restos formaram, e o Plastiglomerado demonstra isso, um novo mineral, que se propaga como um semblante da natureza, diz Bassols.

Os termos amor, gozo e transferência, suas variedades e combinações, foram o tema do congresso.
A transferência seria um deslocamento da libido do campo do gozo à experiência de amor, uma transferência da satisfação autoerótica da pulsão, que não tem um objeto predeterminado, no sentido da construção de um objeto de amor determinado por aquilo que Freud chama de condições do amor. Seriam as condições estruturadas pela fantasia do sujeito.
A fantasia fornece ao sujeito o enquadre dessas condições particulares, fixa o acesso da pulsão a um objeto. Há assim, no amor, a construção de um objeto novo para uma pulsão que não tinha objeto.
O amor seria então uma sublimação do gozo, a produção de um novo objeto que não é um objeto da pulsão. Aliás, como dizia Freud, a pulsão não ama e não odeia, somente quer se satisfazer. Que a pulsão não tenha um objeto próprio e determinado quer dizer, também, no ensino de Lacan, que não há relação sexual.
O amor faz semblante de uma relação que não existe no nível do gozo pulsional, um nível em que a pulsão somente se satisfaz em sua trajetória de ida e volta ao redor do objeto. A pulsão não se satisfaz no objeto, mas em seu percurso ao redor dele.

Mas é nessa trajetória que a pulsão pode construir um novo objeto que venha ocupar o lugar de das Ding, do objeto de gozo que não existe, que é sempre o objeto perdido para o sujeito.

Isso coloca um problema na transferência do gozo ao amor. O sujeito, no verdadeiro amor, ama algo no outro que não é o outro: “amo em ti mais que tu”, é a fórmula enunciada por Lacan em Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Haveria aí a construção de um objeto mais além do outro, que mutila o outro deste objeto, o objeto a, diz Bassols.
Aliás, me parece que a insistência de Lacan é na direção de radicalizar a noção freudiana de que o objeto da pulsão nunca está à altura da expectativa. Ou seja, que o alvo pulsional é impossível de ser realizado de maneira direta, e, ao não atingir seu objetivo, a pulsão descreve um círculo ao redor de seu objeto que a devolve a seu ponto de origem, levando à reativação da sua fonte e ao reinício de um novo trajeto. Daí a concepção de objeto a que funciona como um condensador de gozo que se constrói neste trajeto e que de alguma forma é cedido ao Outro.

É neste mais além que o gozo pode se tornar amor e conceber a transferência como uma transformação do gozo em amor.
De fato, a transferência analítica é uma forma singular desta transformação que é promovida pela posição do analista que recusa ao sujeito a demanda de amor e a demanda de satisfação da pulsão. Há então uma transferência – no sentido de deslocamento – do gozo ao amor, mas há também um retorno do amor sobre o gozo.
Os efeitos deste retorno têm sempre a vertente que é o reverso do amor, onde as outras paixões do ser – o ódio e a ignorância – estão também trabalhando na transferência.

Freud qualificou estes efeitos de “transferência negativa”. Eles são os efeitos deste retorno do amor sobre o gozo para cada sujeito, em sua relação com o Outro. Isso coloca uma série de paradoxos, aponta Bassols.

O amor de transferência e seu efeito de Sujeito Suposto Saber é a chave de abertura do inconsciente, mas é também seu obstáculo, o fecho que opera na vertente do gozo. A verdadeira chave do Sujeito Suposto Saber, diz Bassols, a chave do amor de transferência, é a extimidade do gozo, da pulsão em seu percurso ao redor do objeto que está condensado na fantasia do sujeito. A porta que precisa ser aberta é a do Sujeito Suposto Saber, mas a chave é o objeto a, condensador de gozo, chave que sempre tem de ser manejada na transferência.

O analista lacaniano, diz Bassols, é aquele que não se identifica com a porta do Sujeito Suposto Saber, mas que sabe acionar a chave, o objeto a desde o interior, servindo-se do amor de transferência, do Sujeito Suposto Saber.

Entre amor e gozo há uma disjunção estrutural, uma descontinuidade cujos efeitos estão nos desvios e sintomas dos impasses da vida amorosa. Gozar do que se ama, amar o que se goza – é a disjunção várias vezes indicada por Lacan e que Freud observara na degradação da vida amorosa.

A transferência analítica como motor, mas também como obstáculo da experiência de análise, é o paradoxo clássico indicado por Freud. A transferência é um laço falso, dizia Freud, que faz existir o Outro do amor através da suposição de um saber no Outro. O amor é sempre uma suposição de saber, acrescenta Bassols. Quando deixamos de amar o outro, deixamos de supor um saber sobre o ser, e é o ódio que pode advir como recusa do ser do outro, de seu modo de gozar antes de tudo. De fato, é um engano, porque o ódio se dirige algumas vezes ao ser do sujeito, ao seu objeto a, de uma maneira mais verdadeira que o amor.

Outra dimensão do amor indicada por Lacan especialmente a partir do seminário Mais, ainda, comenta Bassols, não é mais a dimensão significante do amor em seu registro simbólico, mas a do amor ligado à letra e ao real.

Nessa vertente, a letra será o nó privilegiado que Lacan localizará nas disjunções e conjunções entre o amor e o gozo, a ponte maior na descontinuidade entre o corpo e a linguagem, entre a pulsão e o Outro. Há um laço entre esta instância da letra e a dimensão de um resto, o resto obtido no final da análise, ao mesmo tempo resto sintomático e resto transferencial.

Os restos produzidos na análise são o resultado de uma operação simbólica sobre o real, como a operação matemática da divisão. O resto é uma fixação de gozo. A lógica da transferência opera reduzindo aquilo que se diz até encontrar os restos de gozo e os significantes sem sentido.

Na transferência do gozo ao amor encontramos a letra do sinthome inscrita no corpo do sujeito, como o laço mais real com o objeto impossível de dizer. Nesta vertente, a transferência, longe de se reduzir a zero, se reduz ao mais singular do sinthome. De fato, não há liquidação da transferência, o que há é sua solidificação na letra sinthome.

Quanto mais acreditamos em liquidar a transferência em sua impossível redução a zero, mais ela volta com seus efeitos negativos.

Então, entre o amor e o gozo há um plastiglomerado como resto de nossa civilização, conclui Bassols. É um novo objeto que a ciência e os mercados incorporaram como um produto de sua atividade simbólica.

Desde esta perspectiva, aquilo que parece ser a aposta da psicanálise orientada pelo seu real – o do inconsciente e da lalangue como o sedimento de equívocos que a história da língua deixa para cada ser falante – é fazer dos restos de uma psicanálise os restos elaborados entre amor e gozo no corpo que fala, um resto fecundo.

Miller em Uma conversa sobre o amor 4 aponta que a psicanálise inventou um novo amor chamado transferência. Freud inventou um novo tipo de Outro ao qual dirigir o amor: um novo Outro que fornece novas respostas ao amor e, talvez, respostas mais adequadas do que aquelas que se encontram na vida cotidiana.

A questão é como o gozo freudiano, gozo parcial, autoerótico, pode vestir-se de Outro, ou seja, se transformar de autoerótico em aloerótico. Ou em termos lacanianos: como o gozo pode entrar na dimensão do Outro. O amor permite ao gozo condescender ao desejo. O que faz o vínculo é o amor, diz Lacan.

Contudo, podemos pensar que a psicanálise tenha inventado também outro gozo. Por exemplo, diz Miller, o gozo puro da fala. Pela produção desse novo gozo na experiência analítica, os tratamentos acabam se estendendo muito. Daí porque Freud que considerava o tratamento analítico um trabalho de interpretação que devia terminar rapidamente, começou a descobrir que os tratamentos se estendiam. Agora se vê em que sentido a psicanálise é uma nova enfermidade. Mas se há um gozo do lado do analisante, também há do lado do analista – há certa homologia entre a posição perversa e a posição do analista, na medida em que se faz instrumento do gozo do Outro. Por isso – aponta Miller – Lacan diz que o analista deve manter-se afastado do gozo que poderia resultar para ele nessa posição.

O importante é que a resposta à “perversão” do analista é o amor, o amor de transferência. O amor guarda uma relação com a, e o amor de transferência constitui um véu do estatuto de desejo de tal objeto. Isso permite ver que o amor – nesse caso o amor de transferência – é um engano porque esconde o objeto a como dejeto. A fórmula desse véu seria o i(a), a imagem de a, a imagem outorga todo o esplendor do imaginário, da beleza, àquilo que, em si mesmo, não tem nada de lindo: por exemplo, os analistas. Haveria aí uma “função de véu”, conclui Miller.

Freud em o Mal-estar na civilização (texto de 1930) vaticinou que nosso tempo traria inimagináveis avanços na ciência e na técnica, possibilitando ao homem tornar-se uma espécie de "deus protético". Entretanto, foi sempre contundente ao afirmar que tais avanços não necessariamente tornariam o homem mais feliz, ou seja, a relação do homem com seus progressos civilizatórios produziria um resíduo ao qual devemos estar atentos. Em A moral sexual "civilizada" e o nervosismo moderno, texto de 1908, Freud diz que a cultura sempre produz como resultado dessa operação um resto não apreendido pela ação humana.

Se a morte da psicanálise já foi decretada um sem número de vezes, talvez seja possível dizer que ela está mais viva do que nunca, na medida em que sua política nada mais é do que oferecer um tratamento aos restos que são hoje, como diz Bassols, um problema, um verdadeiro obstáculo à sobrevivência da própria espécie.



 
 

1 Texto apresentado na EBP-SP, na Noite da Biblioteca “Amor e Sacrifício”, em 30/8/2017, a partir do artigo A transferência, entre o amor e o gozo de Miquel Bassols, publicado na Revista Colofón, Boletim da FIBOL, n° 36 (outubro 2016).

2 Membro da EBP/AMP

3 Freud, S. Análise terminável e interminável, Ed. Standard Brasileira. Rio de Janeiro, Imago, 1980, vol. XXIII, p. 261.

4 Miller, J.-A. Uma conversa sobre o amor in Opção Lacaniana online nº 2 | www.opcaolacaniana.com.br
 
   
   
   
 
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